terça-feira, 30 de outubro de 2018

3- Veado na Cabeça




         Apesar das várias peculiaridades de um bairro composto por homens em esmagadora maioria, Subúrbia não era tão mais diferente assim de seus arredores na zona norte do Rio. Embora menor do que os vizinhos, a antiga região militar possuía centro comercial, bar, casa de festas, batalhão, cinema e até uma pequena favelinha estava se formando perto da área central. A diferença gritante para com os bairros vizinhos era o fato de Subúrbia ter isolamento viário, isto é, para entrar e sair só era possível de metrô ou trem, já que se tratava de uma microrregião, uma pequena área que não deveria sequer resistir aos efeitos de compressão do tempo, mas que respirava dia e noite e talvez esse fosse um fato que não pudesse ser ignorado. Existiam estradas e avenidas sim, porém pouco utilizadas. Existiam, também, muitos outros fatos que jamais poderiam ser despercebidos na antiga Quadra 24, por mais que muitos tentassem. Por exemplo, há que se saber que, existindo malandragem em qualquer lugar onde exista o homem do mundo, da vida fácil, da boêmia e da cafuçaria (o que, por favor, não tem nada a ver com raça), então certamente também há o bom e velho bicheiro, para dar sentido prático ao famoso jogo do bicho. Sim, nós temos malandros!
            Há quem julgue incomum, mas eles existem. Caio era um deles, inclusive: um homossexual evangélico e temente a Deus, mas do primeiro detalhe somente ele próprio sabia, ninguém mais. Talvez por ser novinho, estar em seus 18 anos e sentir que devesse dar algo de positivo aos pais, nem que fosse para preencher algumas de suas expectativas parentais, o jovem crente estava sempre andando na linha, muito embora guardasse dentro de si aqueles pensamentos próprios de como tudo seria no futuro. Pois bem, no futuro, Caio se imaginava formado em engenharia civil e morando na zona sul do Rio de Janeiro, que era seu lugar favorito, ainda que morasse no pé de um morro há poucos meses. Por causa do trabalho da mãe e também por pertencerem à classe baixa da sociedade, tiveram de se mudar e aquela espécie de recomeço estava mexendo muito com o rapaz, que era totalmente desacostumado ao cenário suburbano como só ouvia falar nos noticiários até então. Antes dali, podiam não morar na zona sul, mas ao menos não estavam tão mais próximos da comunidade. Quando Caio cansava do ambiente ou então sentia que não deveria estar muito tempo por ali, passava um dia ou outra na casa do pai, o pastor, que era quem o ajudava a seguir firme e forte nos ideais e objetivos religiosos. Só que com um custo: o jovem não podia nunca deixar a mente e os desejos crescerem, o que era difícil, já que os homens da igreja eram quem mais o atraíam, e a casa dele estava quase sempre na presença de algum daqueles varões. Caio podia ser ingênuo e totalmente inexperiente, mas era humano, homem e totalmente suscetível aos desejos da carne quando exposto aos hormônios e fenomônios do animal homem, do bicho macho. Bastava um sábado ou domingo na presença do pai, que aí surgia um ou outro amigo que ele normalmente só encontraria nas reuniões da igreja, certamente vestido por um terno preto que dava a impressão de ser o homem mais correto e puro do mundo. Evangélicos, sérios, com postura, porém a mala presente e marcada na calça social escura, deixando o mais novo suando de nervoso. Mas quando o encontro acontecia na casa do pai, aí era diferente: os pastores e envolvidos costumavam ir mais à vontade, de bermuda, camiseta, chinelo. Pronto, aí já viu! Era quase como se o inimigo quisesse tentar Caio, sendo necessário que essa jovem ovelha se retirasse para os próprios aposentos, os pés queimando de tanto fogo sendo dissipado no chão por conta da presença daqueles homens. O padrão de beleza em sua mente era exatamente aquele: machos brancos, educados, com a fala esclarecida, didática e com alto poder de persuasão através da lábia. A maioria dos que permaneciam por dias em sua mente, talvez na forma de desejo juvenil, fossem os de olhos claros e com tendência a pelos loiros pelo corpo, de uma maneira tão eurocêntrica ("que gira ao redor dos padrões da Europa") que somente ele saberia explicar. E o cara também tinha que ser da igreja, porque os crentes deixavam esse pensamento de "será que faz isso? será que faz aquilo?" por trás de qualquer pecador que sabe que é pecador. O novinho ainda não se via pecando, por isso era virgem, mas era incontrolável pensar no que os homens do Senhor faziam entre quatro paredes. Tão puros, castos, como será que faziam filhos? Ele começava então a se lembrar de outro fato que não poderia ignorar: muitos deles eram ex alguma coisa, viciado, ladrão, traficante, isso ou aquilo outro. Não julgando, mas como permanecer numa casa lotada de homens religiosos, todos dentro do padrão de beleza de um jovem homossexual passivo e aparentando essa coisa de, por trás dos panos, ser um macho de primeira linha? Muitos com dois, três, quatro filhos, não conseguindo parar de ser pai a cada ano vivido. Alguns controversos, com casamentos terminados, mas nem por isso paravam de engravidar moças.
            É aí que a questão de morar com a mãe começa a complicar a vivência de Caio. Ela não era evangélica, morava na favela e adorava beber. Não tinha homem certo, mas nunca desrespeitou o filho ou sua religião, pelo contrário, até o influenciava a se entregar cada vez mais à mesma, justo para tentar deixá-lo afastado ao máximo do cenário periférico que, em sua visão, poderia aliciá-lo. O grande colapso que aconteceu dentro da rotina familiar de Caio foi que ele jamais imaginou o perigo por trás de seus gostos para homens e como isso o culatraria num cenário jamais imaginado por si mesmo. Talvez o que ele mais gostasse fosse do jeito sério, educado e certeiro de um outro cara, além da lábia que o garantisse segurança e firmeza da índole, como se significasse certeza de uma pessoa íntegra, um verdadeiro varão de palavra. Ele não desconfiou, porém, de que a comunicação certeira pode acontecer sem ser verbalizada, basta que as pessoas exercitem seus sentidos, como se fosse um "ouvido" da visão para tentar escutar aquilo que só pode ser visto e interpretado. Sim, a boa e velha sinestesia, com uma leve pitada de cereja.
            Eis que, numa manhã de sol, por volta das 9h da manhã, Caio acordou na casa de sua mãe e despreguiçou o corpinho magro e branco sobre a cama de solteiro. Sentiu o calor ao redor, lembrou-se de não dispor de um ar condicionado ali, como na casa do pai, e percebeu que o suor começaria a escorrer muito em breve, algo totalmente repugnante ao seu ver. Suar, transpirar, exalar cheiros eram coisas absolutamente improváveis para um rapaz tão higiênico, educado e comportado como ele, por isso se pôs logo de pé, pegou a roupa que já havia deixado separada desde a noite anterior e partiu para o banheiro. Ao passar pela sala, cumprimentou a mãe tomando café na mesa com um beijo e seguiu o caminho rumo ao banho. Não demorou sequer cinco minutos e já saiu arrumado, de calça jeans, blusa social bem engomada e passada, sem qualquer amassado, e a imagem totalmente simétrica para uma manhã ensolarada daquelas: estava, em suas palavras, esteticamente perfeito, até mesmo o cabelo devidamente repartido pela lateral. Sentou-se à mesa, conversou breve com a mãe e não quis demorar muito. Quando estava se preparando para sair e dar início à rotina diária, a coroa lembrou de pedir uma coisa.
- Filho, será que você faria um favor pra mamãe?
- Claro, mãe! É só pedir!
Caio retornou à sala e esperou que ela anotasse algumas coisas num papel. Em seguida, a mulher de cabelos escuros entregou ao filho esse mesmo papel e algumas notas de dez reais. Sorriu e percebeu no rosto dele a ligeira insatisfação com aquele pedido, que era incomum, mas às vezes acontecia.
- Passa no bicheiro e faz esse jogo pra mim?
Ela bem sabia que era contra as regras do rapaz, porém também sabia que ele jamais se negaria aquilo, principalmente porque preferia ele mesmo fazê-lo do que deixar que ela o fizesse, por achar perigoso ou coisa parecida. Caio fez o bico de sempre, cruzou os braços e tentou desviar o olhar.
- Por favor, meu bebê! É que eu tô toda descabelada e não quero perder o horário do jogo! - insistiu.
Ele pegou o papel e o dinheiro, colocou tudo dobrado no bolso da calça e fez que sim com a cabeça.
- Tá, tá bom, mãe.. - revirou os olhos para mostrar o descontentamento, tornou a beijá-la no rosto e se despediu outra vez. - Fui!
- Vai lá! Bom dia, meu filho!
Sorriram.
- Bom dia, mãe!
Ele fechou a porta atrás de si, contemplou o cenário ao redor e quis até estender os braços para respirar ar fresco, mas o pé do morro estava com cheiro de queimado, por conta de algum vizinho queimando folha seca por ali. Caio sentiu o desgosto, percebeu o odor de queima começando a impregnar seu corpo e decidiu sair logo. Se estivesse morando no pai, as coisas certamente não seriam daquele jeito, o rapaz soube bem. Desceu pouco acelerado pela base da comunidade e não viu ninguém pelo meio do caminho, tendo um pouco daquela sensação de que o clima não estava muito amigável. Seguiu sem qualquer sinal de vida aos arredores até o ponto de ônibus, aguardou alguns poucos minutos e tomou condução até à estação do metrô, a mente ainda lotada de pensamentos e vontades de não retornar à casa da mãe tão cedo, de tanto que não suportava o ambiente daquele jeito, totalmente diferente de si. Foi só quando entrou no vagão gelado e mais ou menos cheio que, ao colocar a mão no bolso para pegar os fones de ouvido, sentira o papel e as notas de dez enrolados no tecido. Aí colocou a mão na cabeça e recordou do fato: o jogo do bicho!
- "Que droga!" - pensou alto, quase chegou a falar.
Assim que a porta abriu pela primeira vez, Caio nem quis saber de onde estava, apenas saiu da estação e foi caminhando desatento, olhando pelos becos daquele bairro onde nunca esteve anteriormente, procurando por entradas de bares e padarias para encontrar algum responsável pelo jogo do bicho na região. O sol não estava tão forte para o calor que tava fazendo, o jovem sentiu que suaria e retirou um guarda-sol para tentar evitar aquela situação anti higiênica em sua visão. Caminhou pela saída do metrô e estranhou o fato de não observar qualquer mulher ali. Sem pensar muito, chegou numa espécie de botequim meio vazio e um senhor de bigode branco apareceu para atendê-lo.
- Com licença, senhor. O senhor sabe onde posso encontrar um bicheiro por aqui?
Educado e direto que só, viu o coroa apontando para a rua lateral e explicar.
- Pega essa rua aqui, rapaz! Vai direto que no pé do morro cê vai ver o Helder sentado na barraquinha do primeiro beco! É o bicheiro aqui do bairrinho.
Por curiosidade, Caio tornou a olhá-lo antes de virar e fez outra pergunta. Só homens ao redor, um calor acima da média e um ambiente um tanto quanto incomum à primeira vista. Como poderia ainda ser Rio de Janeiro, ainda ser subúrbio?
- Obrigado, senhor. Aliás, qual é o nome daqui?
O outro estranhou a dúvida.
- Aqui? - o velho apontou pro chão e repensou a pergunta, como se não acreditasse nela. - Aqui é Subúrbia, garoto! Seja bem vindo e presta atenção nas ruas, ein!
A advertência veio em um tom amigável, porém não menos importante. Cuidado com as ruas de Subúrbia. Caio olhou ao redor, sentiu o calor do mormaço e foi andando para fora do estabelecimento, com cheiro de álcool e suor entranhados nos tijolos das paredes antigas. Caminhou até à estreita calçada, virou na rua indicada e, antes de começar a subir, percebeu que, de fato, se tratava de uma subida mesmo. Uma ladeira. Um morro. Ou melhor, outro morro. Era diferente do da casa da mãe, então, além de haver o contraste consigo, havia também o contraste com tudo que ele conhecia por "favela" até então. Ele foi subindo sem nem se preocupar com a possibilidade de haver tráfico de drogas e possíveis traficantes por ali, de tanto que queria retomar logo a própria rotina e cair fora. Desatento e desinteressado, virou no primeiro beco, conforme indicado pelo coroa minutos atrás, e deu de cara com uma mesinha metálica presa no chão, perto da virada no final da viela. Pareceu o ponto ideal para o trabalho de um bicheiro, então o novinho parou de andar e ficou um curto tempo analisando e pensando no que fazer. Um outro coroa apareceu numa janelinha próxima e o observou por alguns instantes.
- Com licença, desculpa incomodar. - educado como sempre. - O senhor que é o Helder?
O velhote mirou Caio dos pés à cabeça, levantou uma das sobrancelhas e fez a linha difícil, aparentemente rigoroso na abordagem.
- Quem que quer falar com ele?
O rapaz não demorou e respondeu sinceramente, afinal de contas, queria logo retornar à própria rotina.
- Eu vim fazer um jogo de bicho e falaram que era aqui, mas a mesa tá vazia.
O velho demorou alguns segundos antes de passar a informação principal.
- O Helder já era pra ter chegado. Vai ver se engraçou com alguém por aí, como sempre. - resmungou como se fosse cuspir no chão, mas não o fez. - Espera uns minutos que daqui a pouco ele aparece aí. Ou então sobe essa rua aqui, ó, e chama no barraco dele, que com certeza vão te atender lá!
Aí apontou o sentido e, sem delongas, fechou a janelinha pela qual estava dando as informações. Caio olhou ao redor, viu que horas eram e constatou que não poderia demorar por muito mais tempo. Acertou o passo na direção indicada e foi subindo pela ruela sem se admirar com o cenário de favela tomando cada vez mais forma, talvez por já estar acostumado com o ambiente onde a mãe morava. Muito embora estivesse sem tempo e desejoso de sair dali, ele se deparou com o fato de ter pouca gente andando pelas ruas, para não dizer ninguém. Isso o fez não ter onde perguntar pelo suposto Helder, então optou por sentar num desses bancos de praça, feito de cimento, e esperar uns minutos até que alguém aparecesse.
            Com a paciência sendo testada, o jovem responsável se pôs a pensar por poucos instantes, até que a rotina diária começasse na comunidade. Os ruídos do dia sendo iniciado foram surgindo e as primeiras pessoas, todos homens, também foram dando as caras. Pouco mais acima de onde estava sentado, Caio viu a porta de um barraco de madeira se abrindo e, de dentro dele, veio a figura no mínimo inusitada, a julgar pelo físico e pela abordagem. O corpo bem desenvolvido, camiseta listrada jogada no ombro, chapéu de panamá, estilo de sambista, meio torto na cabeça, além do short descendo de lado, com a estampa da cueca boxer aparecendo para quem quisesse ver. O cabelo raspado nas laterais, todo trançado num modelo afro para a parte de trás, preso ao couro cabeludo. Numa das mãos, vários reais de diferentes cores, atravessados por trás do dedo médio, junto com um pedaço de pão com manteiga, outrora mordido por dentes afiados e sistematicamente encaixados na mandíbula bem destacada no rosto. A mesma boca que repuxava a carne de miolo do aperitivo era a que também insistia em, durante possíveis momentos de prazer e êxtase de tesão do safado, morder, chupar e lamber uma boa de uma bunda gorda, com a vontade de um predador genuíno, que anseia pela cruza. Uma boca preparada para instigar uma boceta, atiçar um cuzinho e arrepiar todo o corpo. Algumas daquelas presas não eram nem de osso, consistindo em peças de ouro maciço e mandado fazer, assim como os anéis espalhados nos dedos e os cordões brilhantes descendo pelo pescoço, apoiados no trapézio definido. Os ombros estavam dançando em um suingue horizontal, totalmente malandreado e marginal, balançando de um lado para o outro, conforme o indivíduo foi andando na direção de Caio. Terminou de fechar a porta do barraco e ajeitou a posição do chapéu na cabeça, para que não caísse com o tempo e o balancê do corpo. Chinelos de tira horizontal, do tipo slide, e uma imagem de São Jorge tatuada da mão até o antebraço, atravessando um crucifixo e pisoteando um dragão em cores intensas, mesmo na pele negra. Pistola na cintura também, ainda que na forma de tatuagem. Um bigode fino, sem qualquer barba. O olhar fixo e marcante. O atual, mas ao mesmo tempo velho e bom malandro. Aquele era Helder, um cafuçu quarentão estilo coroa inteiraço, que não foi poupado do minuto que saiu de dentro do barraco.
- Bom dia, chefe!
Um homem que passou por ele teve que cumprimentá-lo, mostrando certo respeito.
- Opa, fulano! Dia! - até para responder existiu o jeito malandreado, todo suspeito, meio mafioso e 171 nato, entre o pilantra e o pilintrado.
Quando respondeu sorrindo, então! Caio observou Helder sendo cumprimentado a praticamente cada passo que dava em direção à parte baixa do morro. Pouco depois que o bicheiro passou por si e o observou por alguns instantes, ele se levantou e começou a descer atrás dele, só que dentro de uma distância segura para vê-lo em seu estado original, no local de origem, nada melhor. Um bicheiro em sua verdadeira essência, sendo um tipo de homem totalmente diferente do qual ele estava acostumado. Os caras da igreja tendiam a ser formais demais, além de excessivamente educados, contrastando drasticamente com o tal Helder, um coroaço inteiro.
- E aí, viado? Tamo junto!
Até a voz séria, sorrateira e arrastada pareceu no mínimo de alguém muito suspeito de ter pulado algum muro pela madrugada. O bicheiro seguiu descendo o morro, com a sandália arrastando pelo asfalto e estalando alto. Ao longo do caminho, continuou cumprimentando e sendo cumprimentado por vários caras diferentes, até que parou num bar de esquina que estava acabando de abrir e puxou assunto. De dentro do balcão, o dono acenou com o dedo e assobiou na direção de Helder, que virou para respondê-lo.
- Fala, mais velho!
- Que manda, moleque?
O velhote encheu um copinho de boteco com café, pingou gotas de leite e logo o vidro embaçou pelo choque térmico dos líquidos se misturando. A cor de café com leite se formou e aí o bicheiro tomou para si, junto com um cigarro a varejo, que colocou por trás da orelha. O sorriso de lobo mau agora foi dado ao dono do bar, como forma de agradecimento pelo favor.
- Eu não mando em nada, mais velho!
Ele ia continuar, mas o próprio velhote completou, como se fosse parte da rotina diária manter aquele diálogo com o bicheiro local, sempre muito conhecido pelo asfalto do chão do subúrbio.
- Só obedece!
Começaram a rir e apertaram a mão num gesto ensaiado anteriormente, diferente do normal. Helder ainda pegou um jornaleco e saiu do bar, atravessando a rua todo jeitoso e tentando ler as notícias principais da capa, bebericando o café com leite que acabou de pegar. Malandro que só, com certeza já havia percebido a presença de Caio, principalmente pelo fato do rapaz não fazer parte da vizinhança e destoar um pouco do resto do cenário, só que ainda ficou na dele para ver qual era a do moleque. Bicheiro sabe que não pode dar mole pra cana disfarçado, ainda mais que os gansos são abusados. Até que mais um conhecido passou e mexeu com o cafuçu, semelhante a todos que por ele passaram.
- Já tá de pé, gostoso? Tão cedo..
Caio entendeu a brincadeira como algo além do normal, mas se manteve quieto observando e escutando de longe. Se tratava de outro homem falando com o bicheiro, então por essa razão ele não esperou ver uma abordagem sexual como aquela.
- O pai não dorme, né, coração?
Ao se cruzarem, a mão do conhecido alisou o braço do cafuçu e passou arrastando na pele de maneira um tanto quanto sugestiva, ao que ele riu e mostrou um dos dentes de ouro reluzindo na boca. À luz do dia, porém sem ninguém perceber, apenas o bicheiro, o colega e Caio, que por coincidência estava ali para jogar no bicho, fazer uma aposta e pagar para ver. Literalmente. O conhecido sorriu saliente e foi correspondido por uma singela piscadela de olho, toda disfarçada com o jeito de malandro nato, que sabe o que tá fazendo.
            Quando os dois, de fato, chegaram no mesmo beco com a mesinha de ferro presa ao chão, Helder parou de disfarçar e olhou diretamente para o rapaz, como se quisesse descobrir o porquê de estar sendo seguido desde que saiu do barraco. Mas antes de perguntar, Caio já foi explicando.
- Bom dia! - a educação prevalecia sempre. - Você que é o Helder?
Ele já sabia que sim, porém sentiu que deveria ajeitar o terreno antes de começar. Talvez aquela fosse a melhor forma de iniciar o diálogo, deixando tudo bem explicado.
- Depende. Pra quem?
O quarentão suspendeu uma das sobrancelhas e entregou uma falsa preocupação. Cruzou os braços e encostou o corpo na parede, esperando pela explicação que viria a seguir.
- É que eu vim fazer um jogo de bicho.
E aí riscou o jovem com o olhar de baixo à cima, como se quisesse pressioná-lo a ser o máximo de sincero possível. Esperou por alguns segundos e, nessa demora, Caio não teve como não compará-lo com os homens da igreja do pai. O mais longe de informal que ele já havia visto algum daqueles caras era quando apareciam para pregar na casa do pai, só de chinelo e bermuda. Eis que apareceu Helder, sendo oposto à norma já pela própria cor, que era negra, enquanto o pessoal da igreja era majoritariamente branco. O comportamento solto e informal pareceu marca principal de sua postura, desde a saída do barraco até à chegada à mesa de trabalho. Tudo muito informal.
- Ah, é pra fazer jogo?
- Sim.
Helder então tomou o cigarro que havia deixado atrás da orelha, acendeu sem a menor pressa em adiantar o lado de Caio, e só então voltou a dar atenção a ele, aparentemente desacreditado de que aquele garoto havia aparecido para fazer um jogo de bicho. Um semblante de ingênuo, fedendo a leite, cara de inexperiente e no meio da favela, fazendo aposta. Como? Será que algum pai tinha esquecido o portão aberto e aí a cria inocente fugiu? Afinal de contas, aquela ali ainda era uma comunidade da zona norte do Rio de Janeiro.
- E tu sabe fazer jogo, moleque?
O mais novo não soube o porquê daquela pergunta, mas existia resposta para ela.
- Eu não sei, foi minha mãe que pediu.
Aí tirou o papel cheio de anotações do bolso e mostrou.
- Tá tudo aqui-
Foi quando um ruído de celular tocando interrompeu o diálogo entre ambos, obrigando o bicheiro a remover um aparelho do bolso do short caindo e atender o telefonema. A mão gesticulou pedindo para que Caio esperasse, o olhar saiu da imagem do rapaz e aí ele só deu atenção à chamada.
- Oi, coração..
Aquele jeito de falar, mais propriamente a lábia, a certeza e o vocabulário escolhidos por Helder, estavam causando algum efeito no corpo franzino e na mente evangelizada do estudante tão fiel e dedicado. Por sua vez, Caio sabia que, antes de tudo, por mais crente que fosse, era também homossexual, então estava pelo menos consciente da sobrecarga hormonal e feromonial às quais estava submetido naquele instante. A visão de um macho solto e tão diferente assim do tipo de homem que conhecia e pelo qual se sentia atraído o deixou vibrante, como se tivesse acabado de descobrir um novo prazer para si.
- Não deixou aí? Porra, mentira?
A conversa no celular continuou rolando, enquanto Helder se esqueceu completamente da presença de Caio e, talvez por isso, tenha deixado a mão livre alisar o próprio corpo, começando pela barriga e brincando nos poucos pelos do tórax de quarentão que curte um chope com os amigos de pelada. Subúrbia, por assim dizer, tinha mais campos e quadras de futebol do que qualquer outra área da zona norte carioca, e isso com certeza se deve à sua população. O bicheiro pareceu o típico suburbiano.
- Avisei pra ele passar e deixar, coração!
Aí foi descendo devagar e brincou no elástico da tira da cueca aparecendo, por cima dos pelinhos na trilha do umbigo. O corpo ainda encostado na parede do beco, um silêncio absoluto, não fosse pela voz falando no telefone. Caio continuou comparando o cafuçu com os homens educados da igreja, relembrando-se de como era raro ter qualquer sinal de sexualidade da parte deles. Ingênuo, ele jamais desconfiaria de que todos eles sabiam de sua orientação sexual e por isso preferiam tratá-lo à distância, não pelo preconceito, mas sim pela hipocrisia. Talvez seja prático dizer que os homens da igreja tratavam Caio da mesma maneira que tratariam uma filha ninfeta de 18 anos do amigo de culto deles: cautela.
- Não, não me chama de malandro! - ele começou a sorrir todo bobo durante a ligação. - Sei que tu se amarra!
Veio a primeira patolada de leve na mala, puxando a cueca com a ponta do dedo para desafogar uma bola de cima da outra. Nem esses hábitos eram tão comuns nos homens da igreja, pelo menos não em público. Não que não fizessem, mas não era assim na frente de qualquer um e nem lentos ou desleixados quanto. Isso não fez Caio sentir nada de ruim, muito, muito pelo contrário! A boca enchera d'água de uma tal forma que o evangélico não soube explicar. E nem queria ou precisava, afinal de contas ele sabia bem o que era por dentro.
- Vô brotar aí, então..
O jeito sexual e sugestivo estavam mexendo com o crente. A masculinidade exagerada ainda fez com que o mavambo sentisse a necessidade de, bem tranquilo e à vontade na conversa, coçar uma das axilas com gosto e tempo, usando os dedos para tocar bem no couro da pele, por onde nasciam os fartos e bem cheirosos pelos debaixo do braço. O resultado de muito investimento por parte do corpo em testosterona e outros hormônios, deixando o gostinho de como um coroa inteiraço daqueles poderia ter sido ao longo da juventude, no auge da explosão de macheza. Será que esporrava bastante até os dias atuais? Com que idade será que descobrira o prazer carnal reservado aos adultos? Acima de tudo, será que ao menos desconfiava de que até aquela coçada de sovaco poderia instigar outros homens, tal qual estava fazendo durante uma mera e despretensiosa ligação? Como se não bastasse, ainda cheirou os dedos para inspirar os próprios feromônios de volta para si. Homem mesmo!
- .. Mas ó, já sabe, né?
Helder começou a encerrar a conversa, se preparando para ir em algum lugar, mas antes parou por alguns segundos e riu alto, deixando no ar o clima animado de piada interna e safada que fez com a outra pessoa na linha. Desceu a mão pelos pentelhos abaixo do umbigo e, assim como com as axilas, deu de cheirar o próprio odor de macho exalando de si, sentindo e amando a si mesmo, valorizando os próprios vapores de um corpo basicamente autoconsciente quando o assunto era putaria. Talvez ele até fosse o tipo de macho que se masturba com o corpo todo, tendo que alisar as coxas, sentir os músculos, os pentelhos, os cheiros, texturas e toque nos mamilos excitados. De repente, coçar o saco e a pele enrugada fizesse não somente cócegas, como também poderia deixá-lo latente, na própria definição do termo. Foi preso nesse momento que o estudante se deu conta de que estavam em Subúrbia e que, portanto, todos ao redor eram majoritariamente homens. Indiretamente, isso significou apenas uma coisa.
- Quero aquela fortalecida!
Riu todo malandreado e desligou a ligação, saindo do alcance da parede na qual estava encostado e andando na direção da mesma janelinha que abrira mais cedo, onde Caio fora informado de onde Helder morava. O bicheiro abriu a porta sem bater, entrou e voltou segundos depois, trazendo um galão de 10 litros d'água escorado no ombro, desses azuis que ficam em alguns filtros.
- Vou só deixar isso ali, moleque! Já volto aí! - disse sem olhá-lo.
Deu um pulinho de leve para ajeitar a posição e o peso do objeto sobre si, preparou o físico e foi caminhando no sentido de subida do morro, na mesma direção do barraco pelo qual saíra pouco mais cedo. O estudante, por sua vez, só conseguiu ficar no mesmo lugar, observando o suingue maldoso dos ombros do cafuçu dançando de um lado para o outro conforme foi andando e arrastando o par de kenners no asfalto cansado. Aquele era um homem do morro subindo o morro. Em seu estado natural, nas condições normais de temperatura e pressão.
            Helder não levou muito tempo até retornar, dando a Caio o deleite de vê-lo descendo, com o chinelo novamente estalando no chão, o ego desleixado exalando e o físico manifestando a masculinidade em sua melhor forma, totalmente banhado pelos raios de sol lambendo o corpo negro e ajudando a aquecê-lo. O suor já era notável, com gotas aflorando por entre a pele, as entranhas, e brincando de escorregar pelo físico desenhado de um cafuçu malandreado e tirado a suburbano. Quem diria que não era o bom, velho e cordial malandro que todo mundo algum dia já conheceu? A respiração ofegante, o short agora manchado de leve na frente, como se tivesse suado até lá, além da mala batendo de um lado para o outro feito um pêndulo, brigando com as bolas para decidir quem destoaria mais no tecido, só para estimular o lado sexual e devasso de um rapaz religioso e puritano a observar todo esse universo descendo o morro. O subúrbio também é um mundo de maldade!
- Desculpa a demora, moleque! - foi se explicando. - Fui resolver um caô!
- Tudo bem, não tem problema!
Caio era sempre muito educado. Colocou a mão no bolso e tornou a tirar aquele papel dado pela mãe, todo rabiscado de números em diferentes ordens e sequências descontínuas. Aproximou-se da mesa onde Helder sentou e percebeu duas coisas: primeiro, o cheiro forte de algo que não conseguiu identificar, mas que certamente não estava no bicheiro anteriormente; segundo, a respiração ofegante do mesmo, denunciando que algo havia acontecido naquela ida até onde quer que tenha ido. O jovem não soube o que pensar, só entregou os rabiscos e esperou que ele copiasse tudo para as próprias anotações. Enquanto o momento se desenrolou, Caio lutou consigo mesmo para não tornar a manjar a mala acumulada no volume ovalado entre as coxas do cafuçu, não obtendo sucesso nas várias tentativas. Quando se deu conta do que estava fazendo, notou a marca de umidade e o desenho perfeito da ferramenta do bicheiro. Como se não bastasse, o próprio malandro desceu uma das mãos até lá e ficou brincando, à medida em que lia tudo que estava escrito no papel e ia entendendo para poder transferir ao outro. Essa ocupação com a tarefa deu a Caio a segurança para continuar manjando a corpulência chamativa de um cafuçu quarentão e com tudo em cima, inteiraço o suficiente para mexer com sua imaginação.
- É 24, moleque?
O evangélico quase se viu nervoso por ter sido pego de surpresa. Olhou para o rosto do mais velho e o percebeu hesitando, com cara de dúvida.
- O que?
- Aqui, ó..
O mavambo virou o papel e apontou com o dedo grosso para a parte de cima da coluna de números, bastante rabiscada. Mesmo esforçando os olhos, o estudante também demorou para compreender a letra da mãe, mas confirmou em seguida, tentando não focar nos anéis de ouro do mavambo.
- É sim.
- Hmmmm. - o tom de certeza foi diferente.
A mão do bicheiro ousou entrar pelo elástico do short e se aventurou lá dentro enquanto ele terminou de passar os últimos números a limpo. Os dedos subiram, desceram, mexeram de um lado para o outro, e, no fim, ajeitaram o cacete numa posição que só fez ressaltar o quão chamativo era. Não só as bolas marcaram, como todo o instrumento de prazer que o cafuçu tinha entre as coxas peludas. O cenário visual pareceu uma montanha, com a arma de fogo bem posicionada, independente de haver ou não um porte para tal.
- Sabe o que é 24, moleque?
A pergunta veio baixa, quase que cantarolada. Caio tremeu na base, mas não entregou o jogo, apesar de sincero.
- Não. 24?
Helder tirou a mão de dentro do short e a usou para entregar os papéis para o jovem, fazendo uma cara de saliente que não revela, apenas deixa subentendido, implícito para que o outro entenda por si. O cheiro de pentelhos misturado com rola subiu forte entre ambos, mas só um deles ficou visivelmente abalado pela tensão sexual aflorada. Os ruídos, a luminosidade, tudo pareceu propositalmente sugestivo, não somente o odor entre eles. A pele do evangélico até arrepiou de leve por conta da exposição aquilo que quase não era acostumado a ter por perto: macho da rua, criado no mundão.
- 24 é veado na cabeça! - começou a rir.
Sem graça, Caio pegou os papéis da mão fedendo a pica de macho e tornou a guardá-los no bolso. A vontade de cheirá-los e chupar os dedos do bicheiro foi tão grande que a boca só faltou babar de tão sedenta, e isso, ele poderia confessar, trouxe um pouco de falta de segurança no sentido do descobrimento. O novinho não sabia que poderia estar tão suscetível a outro homem daquela maneira, principalmente dada a situação e o cenário. Sem muita cerimônia, entregou o dinheiro a Helder, virou o corpo e começou a andar para fora do beco, ciente de que muito provavelmente estava sendo metralhado com o olhar, totalmente percebido em suas manjadas para a mala do macho malandro. Foi quando a palavra voltou a si, e aí o corpo foi obrigado a parar por completo.
- Moleque!
Caio olhou para trás, pouco antes de virar o beco, e olhou para o cafuçu sentado todo aberto em sua cadeira, a mão novamente dentro do short. Estava mexendo tão aflita que, mesmo longe, o rapaz conseguiu sentir o cheiro forte de masculinidade aflorada. O volume descomunal formado estava muito maior do que antes, revelando e ao mesmo tempo secretando uma das ferramentas do prazer, em toda sua corpulência.
- Não esquece de "vim" buscar o resultado mais tarde.
O estudante pegou fogo por dentro, fez que sim com a cabeça e voltou a pensar nas passadas que deveria dar para sair dali. O riso na boca do malandro brilhou pelo dente de ouro refletindo luz, num visual bastante marginal e sugestivo para um rapaz evangélico e todo comportado, normativo por si. Caio deu o fora do beco e correu para a estação do metrô, querendo jurar para si mesmo que nem tão cedo voltaria a Subúrbia, tamanha insegurança sexual estava sentindo. E se desse ruim? E se quisesse voltar e não quisesse sair, por exemplo? O que será que acontece?
            Desacostumado com aquele tipo de tratamento por outro homem, o novinho passou o restante do dia com a cabeça distante da realidade, entregue à imaginação aflorada pela presença forte de um malandro nos pensamentos. No que dizia respeito ao lado sexual, ele até já se pegou algumas vezes tentando pensar no que o mais atraente dos caras da igreja faria consigo, caso se envolvessem amorosamente. Sim, amorosamente, porque Caio era todo reservado demais, e talvez por isso tenha se sentido muito quente perto de Helder. Só de pensar no nome do bicheiro, o corpo tornou a aquecer automaticamente, e, tomado pelo calor, a primeira coisa pensada foi em água. Em seguida, veio a ideia da praia e do verão, como se fosse um cenário alternativo para tentar fugir do rumo erótico que a mente estava tendo até então. Mas eis que, no meio da areia, surgiu também a cadeira de praia com um negão deitado só de sunga, um latão de cerveja na mão, as coxas espaçadas e um tamanho desproporcional de ferramenta retratada entre as pernas, com marca das bolas e tudo. Coroaço tomando sol em plena cabeça do evangélico, um velho o suficiente para ser pai do outro. Eram muitos tabus sendo quebrados em tão pouco tempo, isso porque conhecera Helder há poucas horas e, desde então, não conseguira mais estudar ou trabalhar. A diferença de idade, a raça, os universos tão opostos, o comportamento, até o suor do cafuçu estavam começando a fazer efeito. Tendo ou não contato físico com o bicheiro, o pouco contato presencial fora bastante para mexer consigo e com sua atenção. Mais do que o cheiro, o calor do cafuçu estava em si, atormentando a mente, alguns músculos e os sentidos. E foi só de noite, voltando do trabalho, que Caio se lembrou de que ainda teria que passar em algum lugar para pegar o resultado do jogo do bicho. Ele já estava no ônibus e ficou irritado pelo esquecimento, porque chegar no bairrinho de ônibus é um problema, mas era o único local que se lembrava de ter bicheiro no curto trajeto até em casa. Aliás, falar disso dá vários enredos, porque, por si só, façamos uma ressalva importante aqui:
- Ônibus é um problema!
O estudante desceu, tomou o metrô e chegou em Subúrbia em menos de vinte minutos, trabalhando a mente para relembrar o caminho feito pela manhã. Dobrou a mesma rua e, antes de chegar, foi ouvindo o barulho de pagode vindo de longe. Muitas lâmpadas penduradas, som de instrumentos musicais e uma cantoria sem igual. Caio deu de frente com uma roda de samba pegando fogo, só homem ao redor e a maioria deles no mesmo estilo de Helder: do mundo. Literalmente, só viu fogo, gritaria e cerveja, principalmente quando a macharia percebeu sua presença e olhou unicamente para si, sem dar fim à roda de samba e ao calor dançante e embrazado entre todos ali presentes.
- Ih, rapaziada! Parece que a gente tem companhia aqui hoje!
Evangélico conservador, Caio sentiu, por qualquer razão que fosse, a mesma coisa que sentia quando algum amigo da igreja do pai vinha pregar em casa e acabava dando alguma atenção a si. Os olhos em seu corpo tinham a certeza de que ele era diferente. Muito mais do que isso: eles só viraram porque identificaram o contraste no cenário, ou seja, não fosse perceptível, não teriam nem pensado em olhar. Um bairro lotado de homens, sem presença feminina. O que será que acontece quando um viado pisa em Subúrbia? O novinho até tentou se dirigir à mesa de ferro onde esteve com o bicheiro anteriormente, mas alguém imediatamente se levantou do meio da roda e começou a falar com ele. Pele negra, corpo avantajado, jeito de militar.
- Vai aonde, ô novinho!?
O estudante quis fingir que não era consigo e continuou andando devagar, ciente de que em algum lugar por ali deveria haver um bloco com todos os resultados do jogo do bicho ao longo do dia, porque geralmente era assim que funcionava no subúrbio carioca. O macho, no entanto, veio atrás dele.
- Tô falando contigo, ô seu moleque!
Ele então se virou e pretendeu ser sincero, só que, impaciente, o maluco metera a mão em seu braço, como se quisesse puxá-lo de volta para o meio da roda de samba, de onde saíram, e exigiu resposta.
- Eu só vim buscar o resultado do bicho, moço! Não quero brigas, eu..
- Ou, ou, ou! - a voz de Helder então tomou conta do espaço. - Tu tá maluco, Valdemir?
O dito cujo então teve que olhar para ver de quem se tratava, só então acatou a ordem e soltou Caio antes mesmo de ser mandado fazê-lo.
- Eu conheço o moleque, porra!
O tal Valdemir ficou alguns segundos analisando e esperando, pensou um pouco e quis rir.
- Olha lá, ein, chef-
- Mete o pé, porra! - o bicheiro interrompeu e o ameaçou com o pé, como se fosse correr atrás dele, enquanto o puto saiu rindo e catando cavaco.
Antes que pudessem dizer qualquer coisa, o mesmo homem chegou à roda de samba interrompida e começou a falar algo bem alto, sendo acompanhado pelo riso dos amigos. Eles riram e ele foi fazendo inúmeras piadas, enquanto Caio e Helder permaneceram ali sozinhos.
- Liga não, garoto! Esses puto enche a cara e perde a noção, tá ligado?
O jovem alisou a área do braço que foi agarrada e balançou a cabeça tentando contornar o constrangimento aparente.
- Não, tudo bem. Eu entendo, cheguei e nem falei com ninguém.
Mas as gargalhadas do grupo de amigos ficou ainda mais alta e começou a interrompê-los nitidamente.
- "O Helder com viado!? Caralho, que filho da puta sortudo!!" - gritou Mauro, o mais alto deles.
- "AAAAAAH, A LÁ! É outro viadão mermo, né!? Tô dizendo!"
- "Shhhhhh! Cala a boca, porra!" - a voz de Valdemir tentou interrompê-lo. - "Se não o Igor escuta e vem botar o viado pra mamar!
Todos voltaram a gargalhar e a fazer escândalo, visivelmente agitados por conta da presença de Caio, do acolhimento dado por Helder e pelo excesso de álcool nas correntes sanguíneas. O bicheiro tentou disfarçar e facilitar para o novinho, resmungando e interrompendo o silêncio para terminar logo com aquilo.
- Veio buscar o resultado, né?
O mais velho tinha dois dados numa mão e algumas cartas de baralho na outra, além de não estar na roda quando o mais novo chegou por ali.
- Sim.
Caminhou até à mesa, afastou a gavetinha e começou a mexer com a mão enorme ali dentro. Estava só de short, diferente do de mais cedo, uma outra camiseta jogada no ombro e o mesmo chapéu de panamá torto na cabeça. Atrás da orelha, um cigarro diferente, feito manualmente. Caio começou a se sentir estranho, e, enquanto isso, a conversa desinibida dos amigos de Helder continuaram.
- "Ah, tu me respeita, Valdemir!" - o tal Igor se defendeu.
O mais baixo dentre eles, branco do braço fechado de tatuagens e uma leve barbicha no rosto.
- "Tá pensando que eu tenho a cara do Mau Mau, que encoxa homem no metrô!?"
Os risos só foram ecoando, sendo que nada do bicheiro encontrar alguma coisa na gaveta.
- "Cala a boca, seu moleque!" - Mau Mau aumentou o tom de voz, muito embora risse junto dos outros.
No meio da gargalhada, alisou a barba grossa no rosto bruto e continuou.
- "Não sei do que o Mauro tá rindo, nem parece que fica mandando foto da piroca prum monte de viado! Tu também é viado, Maurão! Se assume, porra!"
Estilo caricata, ele insistiu na afirmação para conseguir o máximo de risadas possível, que foi o que aconteceu. De onde o bicheiro e o estudante estavam, não podiam ser vistos, mas os caras sabiam que estavam por ali e que certamente podiam escutá-los, só que nada disso foi suficiente para impedir o show de piadinhas sem escrúpulos acontecendo.
- "Eu mostro mermo, mermão! A pica não é minha? Mó pirocão, porra, tenho que mostrar sim!" - Mauro decidiu responder.
E aí, poucos segundos após, os colegas gritaram em represália, todos ao mesmo tempo.
- "AH, GUARDA ISSO, SEU MERDA! TÁ QUE NEM O CAVALIN?"

Um dos rapazes ali presentes, Vinícius, virou o corpo e começou a rir junto, tendo sido chamado por aquele apelido de "Cavalin".
- "ISSO AÍ NÃO ENCHE BARRIGA NÃO, MAURÃO! HAHAHAHAHA!"
Caio, parado em seu lugar e assim como você, só pôde imaginar tudo que estava acontecendo ali. Como um coroaço como Helder tinha aquele tipo de amizade? Como poderia um grupo de machos mais velhos se reunir e sair aquilo ali como resultado? Afinal de contas, por que estavam se comportando como adolescentes e se mostrando sem o menor pudor? Não dispunham sequer da desculpa do excesso de hormônios para justificar aquela índole sexualmente explícita e informal. O evangélico nunca tinha visto nenhum outro homem nu, sendo que há poucos metros existia um deles mostrando aos outros do que era feito, todo seu tamanho e exuberância das partes íntimas, de sua intimidade, sem qualquer pudor. Tudo que o pai ensinara que devia ficar guardado estava sendo exposto, mexendo com seus medos e curiosidades. Medo porque tudo era muito novo e arriscado, perigoso, e curiosidade porque era virgem antes de tudo, e estava pisando em Subúrbia. O que será que acontece?
- "Eu gosto de ser elogiado, pô, quem não gosta?" - Mauro seguiu explicando. - "Só que eu só fico no elogio, né? Diferente do futuro maridão aqui, ó, que andou comendo umas bonequinhas semana passada!"
Apontou na direção de um dos amigos e, como sempre, os outros riram alto. O apontado tinha aparência de quarentão, era branco e já apresentava entradas na cabeça, além da leve barriga de chope e um par de grossas e peludas coxas.
- "Logo tu, Cléber? Ah, não, eu duvido!"
Nenhum deles acreditou. De longe, Helder desistiu de encontrar o papel com o resultado do jogo e concluiu o inevitável: teria que buscar em casa, no mesmo barraco de onde fora visto sair de manhã. Entre outras palavras, teria que ir com Caio até à parte mais acima do morro, ou seja, passariam explicitamente diante da mesma roda de amigos bêbados que estavam falando abertamente sobre sexo e putaria entre homens, assunto iniciado pela mera presença do viado por ali. E aí, o que poderia acontecer de mais nisso? A maldade de ambos em adiar esse momento só deixou evidente que algo estava rolando e que os dois sabiam disso. Mais do que isso: os dois sabiam que os dois sabiam disso, por isso mesmo que era uma malícia, uma malandragem das boas. Talvez o tempo prolongado numa favela de Subúrbia estivesse mexendo com os instintos evangélicos e castos de Caio.
- Se liga, moleque.. - o bicheiro começou a explicar. - Vamo ter que ir lá no meu barraco buscar o resultado. Eu moro logo aqui em cima, de lá tu já mete o pé.
O novinho sentiu o fogo percorrendo o corpo e se animou um pouco com a ideia, apesar de em nada querer demonstrar aquilo. Estava começando a se adaptar com o fato de ser bem visto e querido de alguma forma por aqueles homens, mesmo que isso envolvesse a zoação. Eles se zoavam e zoavam ele, tudo bem, mas no fundo, bem no fundo, de alguma forma pareceram se interessar um pouco por aquela diferença que ele causava no cenário. Estavam tão impactados pela possível homossexualidade dele que não se calaram desde então, dando início à zoação geral. A pouca quantidade de malícia em sua mente foi suficiente para deduzir isso, então o calor do bairrinho foi se transformando em entendimento, que por sua vez vira arma.
- Sem problema, vamos até lá!
Helder soube que não seria fácil, então respirou fundo, acertou o passo e se preparou para sair dali com o rapaz. Antes mesmo de saírem do bequinho, a conversa na roda de samba continuou alta, com o tal Cléber terminando de se defender da zoação de um dos colegas.
- ".. que nem o Marlon, pelo menos!"
No momento exato em que Caio entrou em contato visual com todos aqueles machos distribuídos e desordenados por ali, um negro de cabelos descoloridos, aparência de novo, se levantou da mesa e fez o semblante de irritado.
- Qual foi, menó? Agora até tu vai ficar de papo torto com essas fofoquinha pra cima de mim?
Os ombros imponentes ficaram armados como se o embate físico fosse explodir a qualquer momento, ao ponto de até Helder demonstrar que deveria se preocupar. Perto do rapaz visivelmente irritado, dois colegas tentaram acalmá-lo, mas sem chegar muito perto.
- Calma, mano, tá todo mundo se zoando! Sem neura, sem neura!
- Sem neura é o caralho, ô filho da puta! Não é de tu que tão fofocando, seu merda! - apontou o dedo na cara de um deles e quase cuspiu em repulsa.
O tom arrastado indicou que estava bêbado, então os amigos nem se preocuparam e só se empenharam em pacificá-lo sem alarde, como se quisessem impedir um estouro desnecessário.
- Geral tá sendo zoado, Marlon! Fica sussa, bro!
Ele só se desfez de tudo que o estava impedindo de sair dali, pegou um enorme carretel de linha e virou o boné para trás. Sem blusa, o tórax rígido ficou quase que definido, aparentando o porte físico de alguém próximo dos 18, 19 anos. Antes de sair de vez, o sujeito irritado virou na direção de Cléber e apontou no rosto dele.
- E tu..
Suspirou brevemente, inflamado em si.
- Não tire os olhos de mim!
A frase atravessou o ambiente como se já pudesse ter sido ouvida anteriormente, numa espécie de eco que deixou todo mundo pensativo com o desfecho. Se eram zoações, não deveria terminar daquela maneira, com uma suposta ameaça. O que um molecote revoltado poderia aprontar? O calor da presença de um viado pisando em Subúrbia estava aquecendo até as brincadeiras dos machos. Acabou que toda a discussão serviu para disfarçar a saída de Caio e Helder, que foram andando pelo beco lateral e, em poucos minutos, chegaram na porta do barraco do bicheiro.
            Enquanto o quarentão entrou para buscar o resultado do jogo do bicho, o estudante ficou na porta, em total silêncio e num escuro que só não foi absoluto por conta da lua radiante no céu noturno. Ele até teve dificuldade para perceber quando o cafuçu parou diante de si e, cercando-o próximo do canto de saída da porta do barraco, estendeu a mão para entregar o resultado do jogo. Devagar, Caio tomou o papel para si e seguiu observando Helder observá-lo, mesmo sob a absurda e linda penumbra da noite calorosa de Subúrbia. Ao longe, talvez existissem pessoas conversando em seus portões, incapazes de se contentar com o clima mais do que tropical de um Rio de Janeiro que, apesar de tudo, respira. E como respira. O fôlego incompatível com aquela tranquilidade trouxe Caio de volta a si, frente à frente com um bicheiro experiente, cafuçu, exibido e quarentão, respirando mais rápido do que o normal. Os dois cara a cara no beco mal iluminado, se olhando, existindo milhões de universos no meio desse olhar. Um evangélico e novinho, outro do mundo e experiente. A virgindade queimou como se fosse uma parte do corpo que acaba de ser descoberta. A primeira pulsada física e catalisada pelo instinto homoafetivo que o rabo de Caio deu, conhecendo a si mesmo como o que era. E o que era? Total silêncio: a mão do bicheiro levanta devagar no escuro total e, por alguns segundos rápidos, ameaça tocar o corpo do estudante. Ele vê isso pela visão periférica, mas não faz nada e só assiste enquanto a mesma mão hesita e desiste. Não recua, só para e fica onde está, não mais suspensa no ar. Não mais inerte no breu. O coração disparou e ele soube que alguma coisa estava prestes a acontecer. Mas o que? O que poderia acontecer?
- Valeu. - agradeceu ao cafuçu e fez como se fosse sair a qualquer instante. - Helder.
Fez questão de chamá-lo pelo nome. O coroa cruzou os braços e sorriu, exibindo os bíceps de fora e, de certa forma, admirando o comportamento diferente e contrastante do novinho naquele cenário. Caio finalmente sentiu segurança para andar e decidiu que já era o suficiente pelo momento, como se fosse melhor estar de volta ao lar. Talvez não sentisse exatamente segurança, apenas necessidade de abrigo, então por isso saiu andando hesitante.
- Aí!
A voz do bicheiro travou seu corpo. Não. Ele já queria ser travado, só faltava o motivo. O mais novo virou o rosto para trás e viu o mavambo alisando o próprio corpo e sorrindo.
- Que foi?
Apesar do escuro, o ouro do malandro reluziu único no sorrisinho marginal.
- Não esquece de voltar pra buscar a tua grana, se ganhar!
Caio sorriu de volta para ele e fez que sim com a cabeça.
- Pode deixar comigo. - esperou um pouco e insistiu. - Helder.
Novamente, o brilho tão atraente naquele jeito torto de sorrir. Parecia um sorriso de êxtase, torto e cru, nu por si só. O mais sincero do sorriso, talvez aquele dado no ápice do prazer. Caio contemplou brevemente os últimos detalhes do cafuçu e finalmente se pôs para fora da favela, ciente de que muita coisa havia mudado depois desse dia. O tempo passaria e ele não tornaria a voltar em Subúrbia. A carne se descobrira fraca e, se deixasse, viraria uma festa. Todos sabem o que acontece na festa da carne, não? Além do mais, a mãe não ganhara no jogo do bicho, então não foi daquela vez que deu veado na cabeça.
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(Queria não ter que dizer, mas não posso correr o risco de vocês descerem a imagem sem perceber que um dos caras tá deliciosamente com a mão em cheio na piroca!)
            Pipeiro nato, fumar um baseado e soltar pipa da laje de casa eram alguns dos passatempos favoritos de Marlon, talvez por isso fosse muito criticado quanto à uma suposta negação da própria idade e das responsabilidades da vida. Não fazia a linha prestativo, exceto quando tinha algo a ganhar em troca, então muitos o chamavam de vadio, vagabundo, até de petista. Pular muros e lajes atrás de pipa era outro hobby. A mudança de hábito que mais mexeu com a vida de Marlon foi ter que parar de transar com uma moça diferente a cada final de semana, já que Subúrbia só tinha homem.


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3. O wattpad removeu todas as minhas obras e por isso eu não posto mais nada lá. A partir de hoje, uso a CDC e também o blog.

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