1.
CALOR
Muito se fala sobre as semelhanças e
diferenças entre os elementos da natureza, e talvez essas histórias sejam tão
antigas quanto as próprias mitologias associadas aos elementos. Dentro deste
cenário, é comum que vejamos a água e o fogo sempre colocados em pólos opostos,
rivalizando até que um ceda à força ou à pressão do outro. Um é o elemento da
mudança, por ter diversas formas, indo do gelo ao vapor, enquanto o outro se
relaciona ao poder, à intensidade e à emoção, em toda sua habilidade de catalisar
e queimar tudo ao redor. Há quem pense na água como mais poderosa do que o fogo,
porém sempre existirão também aqueles que lembram do fato dele colocá-la para
ferver e, em seguida, evaporá-la, secá-la. A mistura entre ambos talvez seja
uma cortina de nuvens de vapor, inúmeras moléculas de óxido de hidrogênio em
desordem, colidindo a esmo, num jato de partículas minúsculas. Água mais fogo
resulta em vapor.
Mais uma segunda-feira estressante na
vida de Natanael. Como se já não bastasse o fato de ter ido dormir tarde da
noite no domingo, o dia seguinte sempre tendia a ser excessivamente chato.
Pensativo, era geralmente na segunda-feira que seu remédio natural acabava,
então ele teria de enfrentar o dia sem qualquer medicação, lidando com a vida
de universitário e trabalhador ao mesmo tempo, incluindo os problemas, as
contas, medos e ansiedades. Pobre Natan. Sentado na pouco acolchoada cadeira
velha do escritório, diante de um computador ainda mais antigo, olhando para o
relógio e torcendo para bater logo 17 horas. Do lado de fora, só o mormaço de
um dia abafado, arrastado e cansativo, meio enjoado, ou então tudo isso talvez
estivesse apenas na percepção do jovem e humilde estudante. Do lado de dentro,
na cachola do dito cujo, ao mesmo tempo que o dedo girava incessantemente pela
rolagem do mouse do velho computador, vários pensamentos sobre a noite
anterior. Os mesmos devaneios responsáveis por efervescer a mente, fundir-se
com o mormaço do clima externo e trazer a transpiração lá do fundo da pele do
coitado. O suor minou intenso na testa,
braços e pernas, deixando parte da blusa social e da calça escura úmidas.
- "Por
que eu fui botar logo essa roupa pesada?" - pensou, conseguindo frear
brevemente os pensamentos obsessivos de outrora, porém por pouquíssimo tempo. -
"O que foi que eu fiz de errado, ein?!"
Foi
por causa deles que ele rolou bastante na cama de madrugada, suando e tendo que
apelar ao remédio natural para dormir tranquilo. A última dose, normalmente a
que mais causava aflição, justamente por ser a última. Como ficar estável até à
próxima? Ele simplesmente não conseguiu parar de pensar em três coisas:
primeiramente, no olhar fixo e compenetrado de Breno, o boyzinho com quem
estava saindo às vezes; segundo, nas contrações apertadas do rabo desse mesmo
puto, enquanto o olhava e o via sentar com tesão em sua rola; e, por último, no
porquê de passar tanto tempo e Breno não voltar a procurá-lo. Vai ver ficou
chato, assim de repente, sem nem um aviso.
-
"Será que pisei na bola?" - quase um tiroteio dentro da cabeça de Natan,
contrastando com o mormaço e o suor do lado de fora do corpo. - "Talvez eu
deva ligar, mas e se ele pensar que tô enchendo o saco?"
Ele
só tinha 23 anos, não era comum ficar dando bola para outros caras durante
tanto tempo assim, mas Breno foi aquele que mudou algumas coisas. O que todos
chamam de "o diferente", que geralmente dizem mexer com os
sentimentos e tudo mais. Talvez ninguém soubesse nem o que o puto fosse ou qual
magia masculina dominava. Ou a qual elemento, por assim dizer, era mais
atraído. Se era um sereio, um gênio, um malandro ou, quem sabe, um demônio. Mas
Breno realmente sentou diferente em Natan, mexeu dentro do universitário e o
fez repensar alguns passos. Safados que só, os dois se encontraram sem querer,
e como? Breno era ex-melhor amigo da ex-namorada de Natan, então fica
compreensível o porquê de tantos "ex" na última frase, já que uma
hora a merda veio à tona. Se conheceram durante uma viagem à casa de praia da
família da moça, que quase descobriu, para melhorar o contexto. Tudo num dia
como aquela segunda-feira abafada, com exceção do excesso de álcool no enredo
do churrasco, que acabou servindo de catalisador para o que se deu.
Talvez Natan estivesse começando a
se apaixonar pelo tal Breno, de 19, sendo que esse novinho tava na idade de
descobrir a vida, então não queria se prender, só que Natan ainda não havia se
dado conta disso, por isso se sentia perdido entre abrir mão do orgulho para ir
adiante no que se viu construindo ou simplesmente acabar desistindo de vez. No
meio de tanta efervescência, o relógio bateu 17 horas em ponto e ele começou a
desligar o velho computador. Ajeitou a mochila no colo, guardou o celular, a
carteira e preparou os fones de ouvido. Desligou o monitor, constatou o suor
interagindo com o ar do ambiente e aí decidiu que seria melhor passar no
banheiro e dar uma lavada no rosto, na intenção de tentar se refrescar. Sozinho
diante do espelho, ele percebeu o quanto a pele insistia em continuar liberando
seus vapores mais internos e escondidos em si, sob camadas e mais camadas de
carne, ossos, músculos, veias e nervos interligados. Talvez fosse por não ser
comum se envolver com outros caras, sendo Breno a segunda vez na vida. Da primeira
ele quase não se lembrava, de tão bêbado e chapado que estava. Vinte e três
anos, pele branca, estilo machinho de barbudo e cabelo bem curto, quase
raspado, um par de sobrancelhas bem fortes na silhueta máscula e meio
quadrática, as feições em dia para com os rústicos traços de homem dedicado,
trabalhador e bom universitário. Não fazia academia, mas levantava halteres que
um amigo emprestou há alguns meses, então os braços estavam bem preenchidos na
blusa social clara, e, talvez por isso, por conta deste aperto, o suor
conseguisse facilmente transparecer a escandescência do físico acalorado e
parcialmente úmido.
-
"Tempo lixoso, calor imprestável!" - a mente não perdoou um só
instante.
Escandescência,
sim, não incandescência. Natan suspendeu as mangas da blusa até os cotovelos,
de onde não poderiam passar, e aí abriu a bica para encher as mãos d'água e
esfregar o rosto. As gotas frescas foram praticamente atiradas contra a pele
suada e transpirante do macho cansado, escorregando em seguida por entre os
pelos da barba e alcançando a parte superior do pescoço, descendo devagar,
acompanhando as trilhas de suor salgado do trabalho exaustivo e rotineiro do
dia abafado, ainda que nublado. Somente na hora de sair do serviço, entre
tantas camadas gasosas e de temperaturas diferenciadas, a chuva decidiu cair. O
atraso da condução e a falta de um guarda-chuvas deixou Natan irritado,
principalmente ao tornar a se lembrar do vácuo deixado por Breno. Em seguida,
lembrou-se também de que estava sem o remédio natural de sempre para ajudar a
segurar a onda, ou pelo menos colocá-lo nela.
-
"Que se dane, vou passar lá em cima hoje!" - foi uma decisão quase
que gritada pela cabeça girando do começo da ansiedade. - "Eu preciso me
controlar nisso tudo!"
Estava
ensopado e só queria chegar em casa, tomar um banho, recorrer ao remédio e
deitar, mas ainda tinha aula na universidade, então a paciência seria um
desafio. Por sorte, o tempo transformou as três horas seguidas num período não
tão insuportável assim, com pouca gente na sala, quase nenhuma falação e sem
pessoas querendo levantar o dedo para impressionar os professores e
professoras. Mas, ainda que se retessem aos detalhes do cotidiano, a mente e o
físico pareceram continuar sentindo a ausência do mesmo homem diante de si. Natan
nunca tinha passado muito tempo pensando em alguém, estava farto de tanta chuva
e nuvens e também tentando aceitar que, naquele momento, talvez Breno estivesse
se divertindo com outras pessoas e nem pensando nele. No fundo, estava farto
mesmo era de esperar e, no fim, tudo acabava se tornando irritante, justamente
por conta da espera demorada e meio que em vão. Assim que a aula acabou, ele
saiu apressado e nem fez questão de pegar carona ou esperar por qualquer
companhia, foi sozinho até o ponto, adiantando o passo para estar logo em casa.
Pegou um ônibus lotado, foi de pé e todo apertado, além de muito molhado,
durante todo o percurso pela maior parte da Avenida Brasil. Bastante difícil
manter um corpo relativamente grande e todo úmido ali sem incomodar alguém,
fosse pela impressão de estar sarrando com a bunda ou com o pau. Mais ou menos na
altura da Penha, o universitário desceu e espraguejou pela chuva caindo, como
se o fato de ter vindo espremido já não fosse suficiente. Caminhou devagar pelo
canto do muro do quartel, subiu pela passarela escorregadia e atravessou para o
outro lado do bairro, apenas observando as luzes dos poucos carros passando
pela avenida abaixo de si, ao mesmo tempo que escutou o barulho dos pneus
atravessando as poças d'água deixadas no asfalto. Típica cidade carioca em
noite abafada de chuva, só que meio quente, em pleno começo de semana. A
temperatura estava desequilibrada, talvez por conta da precipitação finalmente
insistindo em cair, porém o interior de seu corpo ainda estava em um contraste
inabalável com as diferentes massas de energia. O quente, o frio, quem sabe
ainda um pouco do efeito Breno, por assim dizer. Andando sempre pelo canto do
muro, agora com cuidado por conta dos sapatos molhados por dentro, Natan entrou
na comunidade, dobrou pela antiga rua velha e foi subindo. Com a cabeça longe,
seguiu mirando o chão molhado.
A favela não era tão grande quanto
os outros complexos existentes no Rio, porém também não era pequena. Como a
maior parte das comunidades, era cheia de becos e vielas, cada um deles levando
a diferentes versões de lugares parecidos. Os pés de Natan estavam cheios de
água, as meias encharcadas e a temperatura do corpo perdida entre descer e
subir, tamanha mistura de circunstâncias em si e ao redor. Pela chuva e o
horário, poucas pessoas estavam circulando pela entrada lateral, menos
movimentada que as outras duas principais. A ruela não era estreita, até porque
existiam alguns carros estacionados por cima das calçadas inacabadas. O chão de
areia se transformara em lama em algumas partes, por culpa da chuva. O jovem e
cansado Natan ajeitou a alça da mochila nos ombros e deu início ao processo de
subida do morro, que nem era alto como os outros da região. Nos primeiros
passos, passou por uma senhora que também estava naquele mesmo trajeto, visivelmente
exausta, cheia de bolsas e ao mesmo tempo lidando com um guarda-chuva
parcialmente quebrado. Foi quando, de dentro de um barraco velho e sem porta,
pouco mais acima deles, a primeira perna grossa e cheia de pelos descoloridos deu
o passo para o lado de fora, prestes a abandonar a secura e colidir com a
climática mornidão ebulindo do contato da água da chuva com o chão quente do pé
da favela. Sensação de umidade relativa do ar: 10%.
- Xô
salvá a senhora, tia! - veio a figura masculina na direção da coroa, já
estendendo uma das mãos para acudi-la com as bolsas. - Vai com calma pra
senhora não escorregar!
Boné
todo preto e discreto na cabeça, bem abaixado no rosto, quase que escondendo o
par de olhos castanhos atentos e fixos à presença de Natan, pouco atrás da
velha com as compras. A camiseta expondo os braços definidos, porém não tão
grandes, revelando também algumas poucas tatuagens pretas espalhadas pelo
bíceps e ao longo das veias dançantes no antebraço. O pouco que deu pra ver do
cabelo já revelou pelos descoloridos, loiros cor de gema, contrastando com o
tom de pele um pouco escuro, logo acima do café, tipo latino. Bigodinho
estrategicamente fino e safado sobre o lábio superior, só pra dar o ponto de
ebulição ideal, também na cor amarela do cabelo sob o boné. Um olhar retraído,
porém não menos atento, de quem está sempre tendo que prestar atenção, apesar
da leve sugestão de estar brisado. Ombros largos e esfericamente desenvolvidos,
de quem tinha experiência com malhação, ao ponto das clavículas grossas
sobressaírem bem marcadas nas pontas da camiseta surrada.
-
Muito obrigada, meu filho! - a coroa agradeceu e consentiu. - Que Deus te
abençoe, viu? - em seguida deu-lhe algumas das bolsas e foi se permitindo ser
ajudada.
Não
era exatamente um homem, era mais como um período. As eras de tempo entre o
adolescente e o adulto, englobando todas as vivências plausíveis nesse
intermédio. Em seus 25 anos, no máximo. Vestindo um short molinho, tipo desses
básicos de treino da adidas, que muita das vezes os caras fazem de
samba-canção, além de um par de chinelos slide da kenner, desses que não são de
dedo, só possuem um tira única "de lado" para segurar o pés enormes e
bem espalmados na superfície de borracha. Os membros responsáveis por levá-lo
adiante e com muito de seu cheiro, seu toque e massa de corpo. O fogo de sua
vontade, dentro da perspectiva dos elementos. E, como todo fogo, bastante
intenso e quente. De tão forte, o pé ainda fez aquele estalo quando o moleque
pisou, porque ele o fez com muita vontade. Em seguida, guardou o radinho na parte
de trás do short e o peso do aparelho fez a peça de roupa descer um pouco,
deixando a estampa da cueca boxer um pouco visível, com um volume
surpreendentemente atraente para Natan, que demorou a desviar o olhar e sentiu
o tiro de fuzil o matando com os olhos. O oblíquo desenhado e convidativo foi
muito difícil de ser ignorado, principalmente com o caminho de pelos descendo
por baixo do umbigo, sendo pecaminosa e ao mesmo tempo deliciosamente
escondidos pela roupa íntima. O estudante pasmou quando percebeu que eles
também era loiros, num delicioso contraste de vários tons do mesmo macho, tudo
no físico latino.
- E
tu? - o mavambo fez a pergunta diretamente ao universitário, que por sua vez
soube exatamente que, de acordo com as dinâmicas do morro, deveria respondê-lo
para que não houvesse qualquer problema. - Té moradô!?
Ele
sabia que era assim que funcionava, já que, muito embora não morasse
propriamente dentro da favela, era ali que existiam as farmácias responsáveis
por vender seu remédio natural a hora de ajudar a lidar com a realidade como
ela era. Então reduziu o passo, lembrou-se do que deveria fazer e respondeu
calmo e sincero.
- Eu
moro lá em baixo, vim só comprar erva.
O
marmanjo deu de ombros, virou-se de costas e sorriu de canto de boca. Torto.
Calor. As mandíbulas ficaram bastante destacadas na silhueta do rosto
parcialmente quadrado. Nesse sorriso, Natan jurou ter visto algo de anormal ao
redor do semblante de quem tá na atividade o tempo todo. Talvez fosse o choque
entre temperaturas, talvez a chuva, quem sabe? Ou então poderia ser o fato de
muito provavelmente o puto querer saber quem ele era. Vai entender! Acontece
que havia uma espécie de aura calorosa ao redor do marginal, perto da qual o
jovem Natan se sentiu ligeiramente intrigado, como se seu interior estivesse
borbulhando devagar, muito embora fosse a primeira vez que viu o cara por ali.
- Então
tamo junto, moradô. Bora lá que vô separá a boa pra tu, demorô?
O
outro fez que sim com a cabeça e aí foram subindo os três pela entrada lateral
da comunidade, a senhora um pouco mais atrás, Natan no meio e o cafuçu na
frente, levando as bolsas consigo. Foi quando um garoto baixinho parou diante
do marginal e cruzou os braços com cara de invocado, vestindo uniforme de
colégio àquela hora da noite.
-
Qual foi, John John? Os cara na boca não tão querendo me vender maconha, eu sou
cria, porra!
O
vapor riu debochado, fingindo que ia virar de costas, mas, num único impulso,
deu um pescotapa bem dado, com os dedos na ponta da orelha do garoto, que ficou
visivelmente irritado e se pôs a reclamar, segurando a cartilagem dolorida.
- E
não é pra vendê mermo, menó! Vai estudar, porra! Olha tua idade, vacilão! Té
agora na rua, vô avisá pra tua mãe!
O
menino não se deu por vencido, pelo contrário, mostrou-se ainda mais revoltado
e respondeu.
-
Pega tua moto e me leva lá em baixo então, John John!
O
cafuçu deu de ombros mais uma vez e mudou o semblante por algum momento, dando a
Natan a impressão de que seria sincero com o menino.
- Tu
sabe que não posso passá da fronteira, menó! - reclamou.
-
Ah, para! Que se fosse pra levar tuas mulé, tu ia!
O
marginal riu e continuou andando, mostrando que já estava cansado de debater,
principalmente porque a coroa e o universitário ainda estavam acompanhando.
- Pai
tem que dá moral pras fiel, né? - respondeu irônico, antes de sair andando. -
Agora vê se dimiscosta, menó!
Desistente,
o garoto desceu o morro todo emburrado e pisando fundo nas passadas, enquanto
eles dois e a senhora andaram por poucos minutos, até que, no meio do trajeto,
uma das portas de uma das várias casinhas da rua se abriu. Dela, saiu uma
mulher de seios volumosos, poucas roupas, aparência de no máximo 22 anos e o
cabelo ruivo preso num coque chamativo por cima da cabeça, a pele pouco mais
clara que a do homem que abordou a velha e Natan na entrada da comunidade.
-
Qual foi, John John? - colocou as mãos nas cadeiras e parou na frente do
marginal. - Cadê aquela moral que tu falô que ia dá, que eu tô esperando até
hoje!?
A
moça fez um bico enorme, cruzou os braços e pôs o dedo alinhado com a lateral
do rosto, a mão no queixo e em tom nítido de deboche misturado com cobrança.
Diante da cena, o traficante pensou um pouco e fez a cara de dúvida.
-
Ih, a lá!? O RG não brotô pra trazê teu gás não, fiel? - usou um tom menos
imperativo, como se estivesse no erro. - Que vacilão do caralho!
Mas
a mulher não quis saber de conversinha.
-
Mané fiel, John John!? Viaja não! Tu falô que ia dá a moral e ralô, tá cheio de
papo torto! - olhou para os lados para não dar atenção. - Pensei que tu ia tá
como? Portando vários malote depois que virô vapô, mas não, tu continua
moleque!
A
senhorinha ainda não havia alcançado os outros dois, por isso a conversa
continuou fluindo, ao passo em que o tal John John começou a rir meio sem graça
diante do questionamento da moça. Ao redor, a chuva caindo lentamente, sendo
que, por estar de chinelos, os pés do cafuçu estavam começando a sujar pelo
chão da rua da favela. Não fosse o hábito de usar meias, certamente estaria
pior. Poucas luzes externas do lugar estavam acesas, além do breu quase que
majoritário, dominando tanto quanto a umidade.
-
Relaxa aí, fiel! Vô dar o papo no RG! - John John respondeu.
Só
que a rapariga se manteve impávida.
-
Não me chama de fiel, vapô! - reclamou. - Fiel tu só chama as piranha que tu
quer taca a pica, seu moleque!
Nesse
instante, a senhora alcançou os dois e aí o marginal riu para a mulher
reclamona.
- Vô
ali e daqui a pouco broto aqui pa desenrolá essa parada pa tu, já é?
Deu
uma piscada de olho que deixou Natan quente por dentro, tudo por conta do jeito
levemente malandreado de lidar com as próprias questões. Aquele era um macho do
morro, justamente o que ficava na entrada, observando o movimento e adiantando
ao máximo possível qualquer informação e contato com o meio externo que possa
vir de fora para dentro da comunidade, por isso a pergunta feita ao
universitário lá no pé da comunidade. O famoso "vapor", já que era o
primeiro a sumir quando o bicho pegava. O mesmo que soltaria fogos para avisar
da possível entrada da polícia a qualquer momento, por exemplo, e logo em
seguida evaporava, por isso o apelido.
-
Não precisa voltá, não, vacilão! - virou de costas e foi pra dentro de casa,
batendo a porta para a rua.
A
coroa olhou para John John, colocou a mão em seu rosto másculo como se fosse
uma avó sorridente e agradeceu pela ajuda.
-
Muito obrigada, Elton. Mande um beijo pra tua mãe!
-
Tamo junto, tia! Sempre que a senhora precisá, tamo aí!
Entregou-lhe
as bolsas e aí ela andou para a calçada, entrando por uma portinha simples, de
ferro enferrujado e remendado com bastante fios, só não caindo do muro por
questões que desafiariam a natureza. Sozinhos pela primeira vez, Elton John,
como era batizado John John, voltou a ser seguido por Natan até à suposta
farmácia onde era vendido o remédio natural, do qual o estudante tanto dependia
para se conter. Assim que chegou, o vapor foi recebido por dois colegas que
estavam de serviço ali, ou, como eles mesmos diziam, estavam na
"atividade". O primeiro deles, mais fortinho e de aparelho nos
dentes, apertou sua mão num comprimento e já foi rindo.
-
Bem vi tu de papinho com a Ju, ein John John!
Aí o
segundo forçou a risada e falou mais alto, querendo aparecer. Os olhos estavam
pequenos, mas não vermelhos, além do nariz sujo de branco. Certamente havia
acabado de cheirar alguma coisa, talvez por isso a voz tenha saído embargada.
-
Ah, caô!? Tá comendo a piranha que geral comeu de novo, Elton? Porra, menó,
acorda pra vida!
Natan
sentiu um pouco de nojo dentro de si, mas soube que não poderia fazer muita
coisa, até porque eram regimentos internos e ele era alguém de fora naquele
ambiente. Engoliu a seco a demonstração explícita do machismo, mas ficou ainda
mais surpreso com a resposta dada pelo marginal.
-
Ah, tu me conhece, WL! - foi falando e caminhando para a parte de trás do
balcão da farmácia, onde estavam exibidos todos os tipos de drogas que
facilmente se vê em qualquer boca de fumo de favela carioca. - Sô putão, porra!
Não nego fogo!
Chegou
a arquear de leve os ombros ao dizer aquilo, dando a Natan a visão dos pelos
das axilas aparecendo por entre o músculo do braço e a pele do tórax, coberto
pela camisa sem mangas. John John passou a mãos pelos tubos de loló, cocaína e
chegou à maconha, aí virou e, querendo ou não querendo, meteu os olhos
certeiros nos do universitário curioso. E aí o branquelo viu o brilho
avermelhado refletindo nitidamente contra si. Nem mesmo seu jeito levemente
sereiano de agir conseguiu entender tamanha malandragem exalando exclusivamente
do corpo do marginal.
-
Tendo pepeca e bunda.. - começou a dizer e não parou de encará-lo. - Eu tô
empurrando, pô! Tá vendo!?
Os
três amigos começaram a gargalhar juntos, sendo que os dois que ali já estavam
se mostraram evidentemente chapados, o WL muito cheirado e demonstrando isso
nos movimentos rápidos e precoces. Era característica dos homens daquele morro
trabalharem chapados, talvez para aguentar a possibilidade dos riscos de
operação policial a qualquer momento e tudo mais. Foi quando John John lembrou-se
do porque estavam ali e tornou a perguntar.
-
Qué de quanto, moradô?
Só
que o cérebro do estudante estava em plena ebulição. Se, de acordo com a
biologia, seu interior era de não sei quantos por cento de água, então talvez o
fogo sendo irradiado pela presença cálida do cafuçu estivesse prestes a começar
a evaporá-lo por completo. Natan demorou, aí pôs a mão no bolso e puxou a nota
de 20 reais amassada.
- Duas
de dez. - entregou o dinheiro na mão grossa e morena do bandido.
Olhos
bastante atento o comportamento do principal homem ali, que também pareceu se
mover dentro de um cenário fora de comum. O cafuçu mexeu numa bolsa que estava
pendurada no poste ao lado e puxou uma penca de pedaços cortados de maconha,
ensacados como se fossem doces vendidos por ambulantes e camelôs nos ônibus da
cidade. Ele se preparou para dar ao universitário, na intenção de que o mesmo
escolhesse, só que, antes disso, Natan abriu a boca e pediu sem qualquer
intenção maliciosa.
-
Pode escolher pra mim, chefe!
Neste
momento, a chuva diminuiu um pouco e mais um cliente da farmácia apareceu ali,
chamando a atenção dos outros dois vendedores. Isso deixou Natan e John John
parcialmente a sós. O cafuçu separou dois pedaços grandes da maconha embalada
que encontrou presa à penca de plásticos e tornou a pendurar o gancho no poste
lateral, pouco abaixo da telha que cobria o beco onde operava uma das várias
bocas de fumo da comunidade. Olhou para o rapaz e estendeu a mão firme para
entregar o fumo escolhido.
- Valeu!
- Natan agradeceu.
Aí
abriu a mão em baixo da do marginal, com a palma virada na dele, preparado para
receber o que supôs que o dito cujo largaria para si. E, de fato, John John
largou, porém num movimento lento e sem qualquer hesitação que outros machos
teriam de ter algum contato excessivo com o físico de Natan. Ao abrir a mão
para soltar a maconha embalada, ele tocou com os cinco dedos ainda fechados bem
na palma da mão do estudante. E aí abriu, arrastando de leve sua pele contra a
dele. Natan jurou ter visto vapores saindo desse contato, como se fosse o
encontro de algo muito quente com algo muito frio, tipo a água e o fogo
resultando na efervescência, na ebulição.
-
Tamo junto.. - a pausa não foi longa, mas pareceu duradoura aos dois, principalmente
por conta do contato entre universos distintos, que agora estavam entrando em
equilíbrio térmico, mediante a troca de energias entre si. - .. fiel.
Sensação
de umidade relativa do ar: 30%. Um sereio do asfalto em contato com um malandro
da favela. Um frio e aquoso, o outro quente e explosivo. A radiação natural do
corpo de Elton fez Natan se arrepiar e, curiosamente, suar diante da
inigualável mistura entre estase (lê-se "estáze", não confundir com
êxtase) climática e sinestesia térmica. Naquele contato ambíguo entre
diferentes mundos, as moléculas dos dois fizeram diversas ligações iônicas, de
átomo para átomo, ajudando a construir o todo temporário que foi a união Elton-Natan
durante curtíssimos, porém não menos intensos, segundos. O interior do estudante
estava prestes a ferver, tudo por conta de uma malícia que ele não conhecia até
então, apesar de já ter se envolvido com outro cara antes. Aquele olho no olho,
o linguajar, a efervescência causada em si, tudo contou muito para quebrar
qualquer escala de temperatura. O universitário fez questão de cheirar a erva
antes de guardá-la no fundo falso da mochila, por entre todos os papéis e
textos que lia diariamente para a faculdade. A mente lotada de pensamentos e
achismos sobre o que acabara de ocorrer, o corpo descendo o morro e tendo a
certeza de que estava sendo observado e talvez comentado por trás.
"Bobeira!", pensou. "Quando que um bandido violento vai dar
condição pra outro cara? Só se for pra enganar e matar!". Poderia parecer
cavernoso demais, mas os noticiários recentes não o deixavam ter outras
preocupações.
Enquanto isso, ainda na boca de
fumo, Elton John estava rindo de algo, enrolando pacientemente um novo baseado
com maconha verdinha e que não era a mesma vendida por ali. Sentado só de short
e a blusa jogada no ombro, ele teve que olhar mais de uma vez para o parceiro
quando escutou aquela perguntando chegando aos ouvidos e fazendo algum sentido.
-
Esse viado que tu trouxe aqui é teu amigo?
O
rosto mostrou a quantidade de dúvida que ele sentiu ao ser perguntado por WL.
Tanta incerteza que achou melhor começar a responder por partes.
-
Ih, qual foi? Que viado que eu trouxe, WL?
De
cara fechada, o outro marginal cruzou os braços na altura do peitoral e continuou
falando bastante sério, chamando a atenção tanto de John John quanto do outro
vapor próximo.
-
Aquele que veio comprar erva contigo. Agora tu tá andando até com viado, é?
O
princípio de risada não veio, como qualquer um imaginaria que viesse. Mas Elton
nem se importou com o tom áspero, até porque, tinha plena noção de até onde iam
seus próprios interesses e também os do comando, muito embora soubesse da
posição da facção quanto aquele tipo de comportamento.
- E
daí se tô? Agora tu vai escolhê pra quem vai vendê droga, meu parceiro?
O
outro levantou uma das sobrancelhas e já foi atacando com o modo de falar sem
pudor.
- Tu
ainda defende? Tá maluco? Viado é errado, mermão, essas porra não é pra tá
andando aqui na favela, não! Papo reto pra tu pegar a visão, John John! - fez
sair como um tipo de adendo. - Tá ligado que tudo aqui chega nos ouvido do pai
da facção!?
Mas
o outro nem quis dar tanta importância ao assunto do colega, agindo de forma
relaxada.
-
Ah, e daí, WL? Tanta parada fora do lugar nessa favela e tu quer que eu me
importe logo com isso?
- É
claro, menó! Já pensou se essa porra vira bagunça?
Foi
quando os dois colegas começaram a rir da cara do marginal todo sério e
visivelmente irritado com a contestação. Isso o deixou ainda mais puto.
-
Que isso, Wallace!? Fica bolado não, mano!
- É,
porra! Tu acha mermo que teu primo Wendell é otário só porque é viado? Geral na
favela gosta dele, tu sabe disso, porra!
Mas
WL não quis mais assunto, tampouco se interessou em continuar dando papo sério depois
de ter escutado aquilo.
- O
Wendell é macho, porra! Cês tão maluco de falar assim do meu primo, caralho?
Elton
John e o outro vapor se olharam e seguraram bastante o riso diante da resposta.
A atitude conjunta deixou Wallace ainda mais fora de si, se é que possível,
ressaltando a veia grossa passando na testa.
-
Qual foi, WL? O que tá pegando contigo, cara? - John John falou sério e depois
riu descontrolado. - Daqui a pouco só falta tu falá que gosta do Bozonaro!
HAHAHAHAHA
O
colega de posto também o acompanhou e caiu na risada. Transtornado, WL virou de
costas e começou a dar passos acelerados para sair dali, completamente
consternado com a conclusão alcançada mediante o comportamento dos dois amigos
de infância. Em sua mente, era impossível Wendell ser viado, já que julgava ser
viado errado. Portanto, um primo seu, sangue de seu sangue e detentor do
sobrenome de sua família, não poderia carregar tal desgosto. Os dois vapores
não riram por tanto tempo da reação inusitada, o cafuçu tornou a enrolar o
baseado e ficou um pouco pensativo por conta do desenrolar envolvendo a simples
aparição de um jovem querendo comprar maconha.
- WL
tá sem noção, John John! Que isso, mano!
- Tu
viu? Do nada, viado! Entendi foi porra nenhuma! - passou a língua na goma do
papel de seda e continuou. - Parece nem que tem um primo gente boa pra caralho
que nem o Wendell!
-
Porra, podes crer! Lembra do que ele fez com aquele viado lá do fim do mundo?
O
vapor parou e pensou durante alguns instantes.
- O
que escrevia? Tal de André?
-
Ele mermo, viado! Lembra disso?
-
Porra, e tem como esquecê? WL infernizô o viado até ele sumir da favela. Falou
dele pra geral, até o puto desaparecer. Ninguém nunca mais viu!
-
Ele se mudou? O papo que chegou em mim foi que alguém tinha matado esse viado,
John John!
- Tá
maluco? Quem seria doente de encostar um dedo naquele André Martins?
Os
dois finalmente voltaram a rir e Elton John puxou o isqueiro para acender o
baseado já enrolado. Olhou para o parceiro, encarou o rosto dele de quem queria
rir e aí se deu conta de que estava falando demais sobre o assunto.
-
Que foi, menó?
-
Vai dizer que tu nunca passô o piru em nenhum desses viados daqui?
Aí
sim a gargalhada veio alta.
- TÁ
MALUCO, MENÓ!? HAHAHAHAHAHA
O
silêncio pareceu inimigo número um dos dois a partir daquele momento.
-
Crente que tu ia mandá um papo reto agora, como? Tu me vem com essa!
- Tô
só te gastando, John John. Acende isso daí pra ver se meu nervosismo passa, que
aí eu paro de te gastar.
Ele
obedeceu, deu uma puxada no cigarro de maconha e já foi passando a bola pro
colega, na intenção de deixá-lo à vontade, bem como o próprio havia desejado.
- O
que tá pegando, cria? Tá nervoso por que, tu?
-
Meu filho vai nascer a qualquer momento, se ligô? E eu tô sem dinheiro, tô
tendo que trampar daqui da boca. Minha mina pode ir a qualquer segundo pro
hospital e eu num vô podê tá lá pra ver meu filho nascer.
-
Brabo, menó. Fuma então! Fuma, que isso daí eu infelizmente não tenho como
resolvê pra tu.
Preocupado,
o mais novo fumou pesado e quis tentar mudar o foco do assunto, na intenção de
parecer menos afobado com tanta pressão sobre si.
- E
tu, John John? Tá sempre cheio de piranha atrás de tu, mas até agora não vi um
melequento desse correndo e te chamando de pai.
Os
dois riram e isso, de fato, ajudou a descontrair a seriedade das
responsabilidades.
- E
num vai vê mermo, cria. Ultimamente tem sido foda, tá ligado? - tentou ser
evasivo, mas não deu muito certo. - Acho que só vô fazê família se conhecê uma
mina responsa, se ligô? Diferente das mina aqui da favela, se pá até de fora
mermo.
-
Ih, tá revoltadão, tu?
-
Porra, por aí, viado. Tô é metendo o pé de problema. Num vô sair daqui pa ir atrás
de mina assim, então vivo sem me comprometê, tá ligado?
Conforme
os parceiros de crime foram fumando e trocando o baseado, a onda foi sendo
revivida no corpo de ambos, cada um sentindo de um jeito. Lentidão, calor,
umidade.
-
Mas tu nunca se imaginou saindo daqui, John John?
-
Daqui da onde, cria? - soltou a fumaça da boca e falou com a voz de maconheiro
tragando. - Da favela?
- De
tudo, pô! Da favela, da bandidagem! Fazê família, cuidar da tua mina, do teu
filho. Papo de melhoria, tá ligado?
Elton
olhou para cima e viu o vapor de si mesmo se transformando na volátil fumaça
proveniente da queima da erva. Ou da queima dos próprios sonhos, agora subindo
pela cabeça. Deixar ou não deixar de ser um vapor? Quando, afinal de contas,
teve que pensar diretamente sobre aquilo? Nunca, talvez. De repente a resposta
era essa. Nunca. Se sairia da comunidade um dia para ter a vida que imaginou
que teria? Nunca. Se já teve que, antes de tudo, imaginar o que seria ter uma
vida? Nunca.
-
Eita, menó!
Num
pulo, o cafuçu ficou de pé e fez como se precisasse de correr.
-
Qual foi?
-
Esqueci de uma parada importante!
Aí
saiu pela lateral do beco onde estavam, entrou numa espécie de garagem
improvisada por dois portões de ferro e saiu, minutos depois, montado numa moto
grande e escura. Fez o motor roncar alto, passou pela frente da boca e tornou a
encontrar com o parceiro de crime.
-
John John, John John.. - fez em tom de desconfiança. - Tu num é de sair da
comunidade, maluco!
-
Então fica ligado e fecha esse bico, menó! - pediu numa forma de súplica bem
humilde. - Se perguntá tu diz que eu já volto, cria!
O
outro não escondeu a preocupação.
-
Olha lá o que tu tá aprontando! Não vai inventar de trombar com os cana na
pista, tu sabe que essa porra de Governador que entrou aí tá botandoo bagulho
salgado!!
-
Relaxa, viado, confia no pai. Não demoro!
2.
UMIDADE
Natan chegou em casa em menos de
cinco minutos, já que não morava tão distante assim da favela. Abriu o pequeno
portão metálico que dava para o corredorzinho lateral, trancou a fechadura e
seguiu pelo escuro apertado da pequena casinha de fundos, onde morava sozinho
num quarto-sala-cozinha bastante aconchegante para um jovem tão responsável e
ao mesmo tempo solitário. O ruído de proximidade despertou a outra figura
solitária, só que independente, que antes estava dormindo bastante tranquila no
tapete da salinha. O universitário observou o animal se espreguiçando no chão e
sorriu de leve, fechando a porta de casa e deixando os sapatos no capacho de
boas vindas. Ao andar, a mão já passou pela bancada do armário minúsculo e
pegou o pote de ração, servindo uma porção modesta dentro da vasilha de comida,
no canto do cômodo.
-
Pronto, pronto.. - disse ao bichano sonolento. - Pode comer, já cheguei.
De
meias, foi deslizando até o banheiro, onde se despiu por completo e entrou de
baixo de um bom banho quente. Muito embora quisesse ficar por ali mais tempo, ele
não demorou muito, só o suficiente para relaxar os músculos no equilíbrio
termológico e tirar o sabonete usado para limpar o corpo em dia. Desligou o
chuveiro, se secou, vestiu só camiseta e samba canção, e aí foi para o quarto.
Assim que chegou, já se jogou na cama e pôs as mãos na mochila, de onde tirou
seu calmante natural, além de alguns instrumentos essenciais a todo
"naturalista" que se preze. Picotou pedaços da erva, colocou no
aparato e moeu tudo. Estava repetindo o ritual diário de se medicar pelo menos
uma vez, normalmente nos fins de noite, quando já havia chegado cansado da
rotina e não restava qualquer responsabilidade pendente.
-
"Só pra relaxar!" - a mente líquida e insólita fez ecoar ao longe.
Natan
juntou a maconha na parte dianteira do bong, colocou um pouco de água ante o
reservatório de vidro e acendeu o isqueiro na ponteira lateral, dando leves
puxões para começar o processo de combustão do mato. Tudo isso ajudou a permear
ainda mais o rito canábico de fuga da realidade. A água, como bem se sabe, não
possui alvos: ela sempre segue um caminho, impossibilitada ou não. E se algo
tenta prendê-la, ela evapora aos céus, interagindo com o ar para não ser pega.
E se algo tenta pegá-la, ela precipita da atmosfera, movida entre si mesma e a
terra, numa imitação líquida do que também pode ser rígido e usado para
construir vales inteiros: gelo. O fato é que Natan era água do começo ao fim, a
prova veio logo assim que o bong parou na boca e aí ele puxou a fumaça branca e
carregada de THC. Sedento, o dedão girou ainda mais a pedra do isqueiro,
tornando a acendê-lo no vidro da maconha. Naquele instante, com a primeira de
todas as tragadas, a temperatura ambiente foi de parcialmente morna para o
começando a ficar quente.
-
Hmmm! - ele até se espreguiçou de tão relaxado, quase esboçando um sorriso. -
Essa tá boa!
Comemorou.
As primeiras ondas de ar quente atravessaram os pulmões e foram acalentando
toda a construção interna de seu corpo. O vapor forte e carregado de puro THC
chegou aos alvéolos e foi pressurizado para que as trocas gasosas acontecessem.
Em questão de pouquíssimos segundos, as células do corpo do universitário
estariam sendo bombardeadas por uma das químicas potencialmente mais relaxantes
que a natureza, como pai ou mãe, possa ter dado ao "homem", como
filho ou filha. Dentro da corrente sanguínea, todos os componentes sendo
acalmados pela ordem dada de fora, do agente externo. Outro puxão, muitos
vapores pressurizados e mais moléculas de umidade expelidas. O quarto ficou com
a fumaça densa da erva, os olhos de Natan ficaram logo vermelhos e caídos, e
aquela água estática dentro de si finalmente voltou a dar sinal de vida, assim
como a do bong nas mãos.
-
"Blop!" - a bolha veio do fundo e chegou à superfície.
O
sorriso largo surgiu no rosto e, de repente, a vida ficou líquida e animada de
novo. Pronto, a cabeça estava feita, então agora ele poderia se dar ao luxo de
escapar da realidade e fingir que a mesma não era tão difícil. Outra puxada no
vidro, outra saraivada de neblina de THC dentro do corpo e mais sensações de
sinestesia. A pele do rapaz ficou arrepiada, principalmente nos braços, e aí,
mesmo no calor do quarto, ele começou a se sentir esquisito. Foi como se a
presença de tanta fumaça estivesse acalorando a situação, numa confusão de estases
alcançadas por conta da mistura de diferentes temperaturas. Natan levantou
devagar, sentindo o corpo atravessar pequenas e leves camadas de ar ao fazê-lo,
e foi até à janela. Quente que só, abriu a portinhola para que a fumaça pudesse
sair do cômodo, até porque, ele mesmo não conseguiria dormir daquele jeito. Foi
quando o frio repentino entrou, e aí o universitário se lembrou do tempo que
estava fazendo. Dentro de si, água borbulhando por conta de tantos vapores
canábicos. Ebulição mental, cozimento físico, mistura sinestésica e, para
completar, a mesma sensação febril de quando sentiu os dedos grossos de homem
do mundo tocando sem querer demais sua mão. A saturação de THC, além de
expandir a mente, estava deixando o jovem Natan borbulhando em chamas. Era
isso, o fogo do mundo estava começando a transformá-lo, já que ele mesmo era
água, portanto prestes a ferver. A prova disso veio em seguida, fisicamente:
febre. Foi melhor fechar a janela, deixar o bong sobre a escrivaninha e deitar.
Dormir, mesmo que pelo fato de estar chapado e viajando. Só que a mente
fervente não deixaria tanta água acumulada em paz facilmente, então mais eco de
pensamento acalentado surgiu. "Quando que um bandido violento vai dar
condição pra outro cara? Só se for pra enganar e matar!".
Na terça-feira, de manhã, o jovem
universitário acordou viajado, literalmente. Todo suado, com o sol mais falso
de todos entrando pelas cortinas e lambendo seu corpo já cedo. A janela estava
aberta, do contrário que imaginou ter feito antes de dormir. De repente o vento
a havia aberto, só que ele nem pôde sentir, de tão chapado. Muito embora o
frescor do ar puro estivesse bastante presente ali, o suor escorrendo deixou Natan
ciente de que algum sonho também havia permeado a madrugada, o que não foi
difícil de imaginar, considerando as condições nas quais dormiu. E também nas
quais acordou, já que a cama e os lençóis se encontravam ensopados pela umidade
do suor. Assim como a segunda-feira, a terça não foi diferente, só que retomando
o pensar no porquê daquele marginal ter aparecido e dado condição ou qualquer
tipo de papo a mais para si.
-
"Mereço.."
Quando
não era sobre um, era sobre outro, por assim dizer. Quando foi que ele começou
a pensar mais em homens do que em mulheres? Nem Natan conseguiu mais definir,
só soube que precisava de um motivo para retornar à favela. Talvez pensasse que
mais uma chance era necessária, como se quisesse provar que, havendo outra
possibilidade, o marginal tornaria a dar mais sinais. Não que fosse dar, mas,
caso desse, então ele estaria certo desde o começo. Mas como? Como voltar, se a
maconha costumava acabar apenas no final do domingo? Teria que, no mínimo,
esperar por mais seis dias corridos para ter a chance de revê-lo, isso caso
desse a sorte do cara estar no mesmo plantão daquela noite, uma vez que se
tratava de um vapor. O trabalho, a faculdade, os trajetos entre eles, tudo
virou oportunidade para que Natan se pusesse a pensar em como arquitetar mais
um encontro "por acaso", semelhante ao primeiro, assim, bem de
repente. A rotina seguiu chata como sempre, até que, na quarta-feira, já pela
noite, a chance de voltar à comunidade apareceu quando um colega de classe,
daqueles com quem ele conversava só uma vez ou outra, pediu a ele que
"fizesse missão". Na gíria, pediu que Natan fosse na favela comprar
drogas.
- Se
eu pudesse, iria, tu sabe, né? - ainda fez questão de mentir na cara de pau.
-
Tudo bem, eu entendo. - fez que sim com a cabeça, feliz por ter arranjado um
motivo qualquer, ainda que bobo, para retornar à comunidade.
Pronto.
Quarta-feira, dia de semana, e lá estava o jovem decidido sobre o que fazer na
volta para casa. Nem quis ficar até o final da última aula, pensou no fato de
ter que passar na favela e saiu mais cedo da faculdade, levando consigo o dinheiro
deixado pelo amigo pedinte. Caminhou pelo sereno, tomou o ônibus no ponto e
desceu um pouco mais à frente do que o de costume, dando a volta para subir
pela mesma entrada que usou da última vez, só pela sensação de repetir os
mesmos passos, como se tudo isso fosse culminar no aparecimento infalível
daquela mesma pessoa. Atento e cruzando o ar que estava começando a ficar úmido
e frio, Natan subiu o pé do morro como se morasse ali, totalmente despreocupado
e um pouco de nada sorridente, talvez por estar pensando na força das
probabilidades matemáticas para além dos encontros e desencontros. Em curtos
passos, passou pelo mesmo ponto no qual encontrara com o vapor da última vez,
mas estava completamente vazio, sem qualquer outra pessoa ao redor. Talvez a hora
ou o tempo esfriando devagar tivessem afastado as pessoas. Natan sentiu que não
teria tanta sorte como da última vez, mas mesmo assim foi até à boca de fumo e
nem lá encontrou aquele pelo qual foi procurar. Quer dizer, ele comprou as
drogas para o amigo, porém não teve qualquer sinal da presença do mesmo
marginal de outrora, aquele cujo toque robusto dos dedos experientes e quentes
roçou-lhe a pele sensível da mão, deixando uma marca que o pobre universitário
não conseguiu mais esquecer. Por isso estava ali, só que sozinho. Natan e as
drogas, porque na boca só estava um dos rapazes da outra vez, além de uma moça
trabalhando.
-
"Não acredito!" - ele xingou mentalmente. - "Que merda!"
Estava
visivelmente contrariado por não ter avistado aquele por quem estava ali. A
desculpa de fazer compras para o colega de classe não enganaria ninguém, muito
menos a si próprio, ele soube bem, portanto nada de auto sabotagem. Quando
menos esperou que pudesse revê-lo, a mão pesada parou em seu ombro esquerdo, só
que estava mais bruta e menos quente do que o normal. Os dedos rígidos
apertaram o osso da clavícula, quase machucando Natan e o obrigando a virar
imediatamente.
- Eu
sabia que era tu, viado!
O
rosto diabólico de Wallace fez o universitário ter a certeza de que algo não
estava correto.
- Tu
é viado, né? Papo reto, pode falar!
A
mão apertou ainda mais o físico de Natan, confirmando que a interação era
perigosa demais. Os tamanhos das pupilas de WL entregaram que ele não estava
puro.
-
Por acaso tu tá ligado no Wendell?
Ele
não entendeu aquela atitude, tampouco o questionário, então deu de ombros e
saiu do aperto da mão do marginal transtornado diante de si.
-
Não, não conheço! - ainda se deu ao trabalho de responder.
Virou
de costas e acelerou o passo no sentido de saída da favela, muito arrependido
por ter tido a ideia de aparecer ali. Foi por uma razão e agora se deparou com
um destino totalmente diferente do que pretendeu. Nada de John John, só um cara
aleatório e puto consigo por qualquer razão que fosse.
-
Vira as costas pra bandido não, seu viado! - escutou o puto gritar de longe.
Wallace
estava cheirado, andando de um lado para o outro e se controlando para não pôr
a mão na pistola presa à cintura e montar na garupa de alguma moto. Não parou
de esfregar o nariz vermelho, de tão acumulado de pó que sua mente estava, até
que parou e decidiu o que fazer. Pegou o radinho, esperou alguns segundos e deu
uma ordem para alguém.
Os sapatos do estudante desceram
carregados pela ladeira lateral da favela, pisando fundo por conta do
arrependimento de ter subido tudo aquilo para nada, só situações ridículas de
tão desnecessárias e aleatórias. Por fora, o tempo estava começando a dar os
primeiros sinais de mais precipitação, a chuva prestes a se armar para depois
cair. Umidade elevada, a visão de Natan perturbada por causa da subida em vão,
o corpo se pondo a descer e retornar para casa, tudo isso num único impulso de
chegar logo em casa, como se tudo estivesse perdido. Pareceu um rio começando a
minar do topo de uma montanha, deslizando abrupto por cada passagem, com o
exclusivo objetivo de chegar ao ponto final. Serpenteando, sereiando de um lado
para o outro, segurando o fôlego para não bufar. Na hora de virar pelo último
beco antes de finalmente sair da comunidade, o universitário, cheio de gás,
bateu de frente com alguém recém saído da mesma passagem pela qual ele estava
prestes a seguir, não fosse pela trombada tão forte que o fizera perder o
equilíbrio e despencar o corpo para trás.
-
Opa, fiel! - a mesma voz embrazada de outrora, que veio tão rápida quanto a mão
quente que segurou o antebraço e o impediu de cair. - Tá com pressa?
Ele
até queria ter tido tempo para reclamar da força com a qual bateu no corpo
eminente do marginal, mas o encontro explosivo por si só já foi suficiente para
agitar novamente o interior com água em estado fervente. Quase nada, apenas um
estalo entre os físicos e pronto. Ebulição interna, pressão, agito, choques de
moléculas e muitas interações num curto espaço de segundo. Calefação.
-
Foi mal, eu tava correndo e..
- Tô
ligado, pô! - John John sorriu torto. - Tá suave!?
Aí
levantou um pouco a borda da touca preta, estilo maloqueiro, cobrindo as
orelhas, e deixou a luz iluminar parte do rosto quadrático de homem pivete, que
gosta de andar descalço pelo morro, enaltecendo também o par de grossas
sobrancelhas e o bigodinho fino, tão loiro descolorido quanto o cabelo
protegido. Só de camiseta, os ombros esféricos estavam bem circulados na
carcaça, os braços definidos, mas nada muito forte, além das axilas tentando
conter alguns pelos querendo sair para tomar o ar da noite. A temperatura e a
proximidade do cafuçu para com o universitário, assim como o contato físico da
mão quente e enorme agarrada ao antebraço, deixaram Natan aflito por algo que
ele não pôde prever. De certa forma, esperou encontrar John John, mas não
daquela maneira, numa trombada afobada e totalmente desencontrada. Foi isso que
ajudou a pôr seu interior em ebulição instantânea assim que os dois se cruzaram
no início do beco de saída da favela.
-
Veio fazer o corre da tua erva, né?
O
universitário só fez que sim com a cabeça, perdido em como reagir diante do
homem que também era o principal motivo dele estar ali. Ensaiou um sorriso para
dar, só que a cara de poucos amigos do marginal não deixou um espaço aberto
para que isso acontecesse. A impressão que ficou foi que o momento durou mais
do que o necessário, até que, como se só agora se dessem conta daquilo, John
John finalmente abriu os dedos grossos e largou do antebraço do rapaz, ato
feito anteriormente para impedir que o mesmo caísse após a trombada que deram.
-
Vim.
Já
dizia a lei da calorimetria que corpos em temperaturas diferentes e que entram
em contato tendem a encontrar, juntos, o equilíbrio termodinâmico, trocando
energia num vai e vem físico-químico e calorimétrico, até chegar num ponto em
comum. A água e o fogo prestes a colidirem em uma só forma, uma única essência
capaz de abranger tanto o quente quanto o frio. O marginal manteve o rosto
sério, afastou-se devagar do universitário e foi andando lentamente pelo
caminho de onde o mesmo viera. Certamente estava fora da favela, então
provavelmente havia acabado de chegar quando se cruzaram, por isso Natan não o
avistou antes. Quando pareceu que cada um tomaria o próprio rumo e que o encontro
havia terminado, o vapor virou para trás e viu o estudante ainda parado, meio
pensativo e olhando para si. A vontade de perguntar qualquer coisa surgiu, mas
foi interrompida pelo rondo de moto acelerada se aproximando.
- Tu
tinha que tá aqui com esse viado, né? - a voz de Wallace veio tão certeira
quanto seu olhar odioso sobre Natan, que ficou acuado pela proximidade da
motocicleta aumentando. - Não me surpreende!
- De
novo esse caô, WL? Deixa o maluco em paz, ele é tão cria quanto você!
Na
intenção de evitar que o marginal avançasse sobre o estudante, Elton foi na
direção do mesmo e parou à frente dele, estendendo os braços para criar um
impedimento físico à ultrapassagem de Wallace, que por sua vez parou a moto.
-
Essa bicha veio comprar droga, John John! Já falei que não aceito papo de
viadagem nessa porra! Não vou vender meu bagulho pra viado nenhum!
- Tu
não vendeu a erva pro maluco, WL!? Tu já pensô se o pai da facção descobre que
tu tá deixando de fazê dinheiro por causa disso, doido?
A
pergunta pareceu afrontosa demais, deixando o marginal ainda mais puto na moto.
- E
DAÍ, JOHN JOHN? E se ele fica sabendo que tu anda acobertando viado da pista
pra andar aqui na favela?
O
cafuçu quis rir, mas soube que tal reação só pioraria a situação. Conteve a
vontade e se manteve defensivo, mas ao mesmo tempo sem deixar de atacar
racionalmente em prol do mesmo ponto.
-
Acobertando do que, WL?
Foi
essa pergunta que fez o ronco do motor da motocicleta parar. Wallace sabia que
responder requeria admitir a implicância que possuía, então, ao menos por hora,
recuar pareceu o mais tranquilo a se fazer, até mesmo mais inteligente. Ele deu
a volta com a moto e foi pelo mesmo caminho de onde veio, mantendo o olhar fixo
em Elton John, como se quisesse deixar evidente que aquilo não acabaria daquele
jeito. Novamente sozinhos, os dois tornaram a se olhar, e aí um novo diálogo
emergiu entre ambos, universitário e vapor.
-
Olha, cria, se eu fosse tu não ficava andando sozinho por aqui, não. Não é
sempre que vô tá presente pra te livrar do WL.
-
Tudo bem, só vim comprar erva. Ele não quis vender, então acho que é melhor
mesmo eu ir embora.
O
marginal viu o estudante virando de costas e saindo de mãos vazias, além dos
ombros fisicamente mais caídos do que o normal. A visão pareceu tão injusta que
ele fechou a mão sem querer, retomando na própria consciência o que havia saído
para fazer na noite anterior. Deu dois passos subindo, sentiu algo na bermuda
surrada e o corpo quente travou. Tornou a olhar para trás e viu um Natan que
estava verdadeiramente pronto para sumir dali, independente do aviso. A ideia
veio no momento ideal.
-
Aí, fiel.. - chamou quase que sem querer.
O
universitário virou o corpo no último segundo e mirou cautelosamente nos olhos
avermelhados do vapor, quentes como o fogo. Os lábios grossos se mexeram e a
mão afundou no bolso da bermuda surrada, trazendo consigo alguns papéis
amassados e um embrulho em papel laminado. O cafuçu foi desfazendo o embolo e
aí olhou para Natan.
- Tô
indo dali tacar fogo nesse boldo. Deram o papo que tá o verme. Foi por isso que
tu brotô, né?
Abriu
um sorriso desinibido e tornou a observar os amassados na própria mão. O rapaz
riu em resposta, mas não entendeu até onde iria o papo, guardando-se em seu
lugar por um breve momento. Só que o vapor foi direto, intenso como um
verdadeiro jato quente de moléculas de umidade sendo disparadas contra uma
labareda cada vez mais crescente.
-
Sim. - mentiu olhando nos olhos vermelhos dele. - Eu vim por isso.
Na
verdade não foi mentira, para ele o "isso" era Elton John e seu par
de olhos perigosamente vermelhos e marginalmente atentos. Um éter proveniente
da mistura entre água e fogo estava começando a se formar entre a mais
inesperada dupla formada: um universitário de faculdade federal e um traficante
de drogas do morro. Elementos totalmente diferentes, mas dançando um ao lado do
outro, numa espécie de balé de sensações e temperaturas que se cruzam, trocam
energia, porém permanecem fora do equilíbrio. É preciso de algo mais para catalisar
a síntese química prestes a entrar em ebulição. John John deixou o corpo mole
como se quisesse mostrar sinceridade na própria fala, muito embora tenha
abaixado o tom de voz ao dizer.
- Então..
- sorriu torto, errado como sempre. - Tá afim?
Olhou
na fuça do estudante e viu o rosto ficando vermelho de timidez, muito ciente de
que aquele ali era um cara diferente dos outros que conhecia. O vapor, como já
dito, era o primeiro a evaporar quando a polícia aparecia, talvez por essa
razão John John estivesse em lugares diferentes e em dias diferentes, sempre
atento às entradas das favelas. E, bem por conta disso, por saber que as áreas
das entradas eram sempre muito vigiadas, a malícia do marginal o implicou a
falar baixo com Natan.
- Po,
eu..
O
jovem engoliu a seco e já começou a se arrepender do que ainda nem havia dito.
Mentir e inventar desculpas pareceu muito injusto, principalmente porque era
tudo que ele mais queria. Esperou encontrar o cafuçu na atividade, como sempre,
porém não foi daquele jeito e aí bateu a sensação de arrependimento. Agora
tinha um convite imenso nas mãos e não quis enfiar os pés por elas. Repensou o
que diria e falou certo de si.
- Eu
topo!
John
John arregalou os olhos e abriu um sorriso parcialmente dopado, vermelho pelo
THC nas veias. Chegou mais perto do conhecido com quem estava marcando de fumar
e continuou o diálogo para definir os próximos passos.
- Se
liga, então vô só ali pegá a moto, rapidão! - gesticulou com a mão apontada
para trás, sentido acima da ladeira. - Tu pega a principal e me espera lá da
esquina, já é?
-
Fechado!
O
corpo de Natan estava todo quente, contrastando com o frio aumentando do lado
de fora, conforme a noite avançava sobre a favela e a cobria com sua frieza de
sempre. Os dois andaram juntos, lado a lado, só até à primeira viela cortar a
rua na qual estavam, aí o marginal foi para uma direção, enquanto Natan seguiu
as instruções e caminhou para a outra, parando assim que encontrou a esquina
indicada pelo cafuçu. Nos curtos minutos que ficou sozinho, o universitário se
colocou a pensar em como estava começando a se envolver, ainda que de maneira
fraternal, com um bandido considerado perigoso e que muito provavelmente era
capaz de fazer coisas horríveis. Lembrou-se então dos noticiários violentos da
TV, de como o Rio de Janeiro estava perigoso, e aí engoliu a seco a decisão
tomada, até porque já estava ali. Onde ele tava com a cabeça para marcar
compromisso com um traficante? A história tinha tudo para terminar com a água
apagando o fogo ou o fogo evaporando a água, de forma que apenas um
permaneceria de pé no fim de tudo. As sensações de medo e frio na barriga só
aumentaram em Natan, principalmente quando ele escutou o ronco do motor da moto
se aproximando e aí se deu conta do inevitável: ele montaria na garupa de um
traficante e ambos se deslocariam para algum lugar da favela que ele nem nunca
tinha ouvido falar. E, só para dar a cereja do bolo no cenário, o estudante
ficou ainda mais preocupado quando reparou que John John voltou não só de moto,
como também com uma arma enorme pendurada no pescoço e o radinho de sempre
enfiado no bolso.
O jovem levou algum tempo para se
acostumar com a parte prática da ideia que topara sem nem pensar muito. Aliás,
pensou sim, porém optou por não desperdiçar a boa oportunidade de aproveitar um
tempo ao lado do marginal por quem estava se interessando, só que não imaginou
que tudo se desenrolaria para aquele cenário de incertezas. E se fosse uma
armadilha? E se John John fosse um macho testando um viado? Alguém querendo
fazer mal, por que não? De onde veio a ideia de que um bandido do morro ia
querer se envolver com um aluno de faculdade? Agora era tarde! Ali estava um
homem feito nas ruas, com uma arma de fogo capaz de assassinar pelo menos
cinquenta pessoas ao redor em questão de poucos segundos, atravessada bem no
pescoço, enquanto o mesmo estava esperando por sua resposta e atitude. Arma de
fogo versus arma de água, quem sairia ileso?
-
Qual vai ser? - o cafuçu estava parado, só com um pé no chão para se equilibrar
no veículo, a cara mais séria do que nunca. - Tu não quer fumar com bandido,
porra? Agora tá com medo do tamanho do meu parafal? HAHAHHAHA
Pareceu
um tudo ou nada para Natan. O trafica ainda levantou uma das sobrancelhas e o
olhou imóvel, desfazendo o semblante sério em seguida, assim que percebeu que o
outro estava começando a hesitar demais.
- Tô
gastando contigo! - riu. - Tu tem medo de moto, fiel? Nunca tinha visto um
fuzil? Sobe aqui, ó!
Apontou
o espaço no banco atrás de si e esticou o braço para chamar o colega, que viu
seu esforço e tentou ceder aos poucos, apesar do medo do pedaço de metal
pendurado no pescoço do traficante. Devagar, Natan foi caminhando a curtos
passos, levantou uma perna e passou pelo outro lado do assento, tomando posição
e se equilibrando para não cair. A primeira tentativa foi certeira, porém ele
sentiu que não duraria muito tempo, precisando de algum lugar no qual pudesse
segurar as mãos, caso contrário, realmente despencaria no menor sinal de
movimento da motocicleta cromada. O vapor acelerou a moto e se preparou para
arrancar, fazendo com que o jovem quase caísse para o lado. Isso arrancou
risadas do marginal, aí ele olhou para trás e mirou os olhos vermelhos
diretamente nas inocentes e calmas íris do olhar do carona.
-
Segura aqui, ó, fiel!
Bateu
lentamente e bastante seguro na lateral do próprio tórax rígido e abriu a mão
como se estivesse esperando pela de Natan para dar início ao trajeto. O rapaz
também entendeu dessa maneira, então ficou um pouco tímido e pôs a mão na do
cafuçu, que agarrou a dele e prendeu do lado no abdome, dando um sorrisinho de
canto de boca para sinalizar que estavam de acordo quanto aquele procedimento.
O movimento foi tão certo que John John até sorriu por inteiro depois de
fazê-lo, dando ao universitário o equilíbrio final para se manter estável sobre
o veículo. O calor se instalou imediatamente entre ambos, sobrevivendo e se
expandindo no curto espaço dos corpos se aquecendo. Um pelo outro, aliás. Só
então o cafuçu pôde arrancar com a moto e finalmente partir rumo ao lugar onde
poderiam fumar maconha e ficar a sós, quem sabe? Ambos desfrutando da mesma
umidade relativa entre si.
3. SUBLIMAÇÃO
Foram quase dez minutos de inúmeras
subidas, descidas, escadarias e degraus improvisados em várias ruelas e
pequenos becos da favela. Alguns espaços eram tão estreitos que Natan teve a
impressão de que os joelhos dobrados para os lados acabariam raspando, cedo ou
tarde, nos muros passando a mil por hora pelo campo de visão. John John
certamente estava a par de todos os caminhos, entradas e saídas do morro, por
isso demonstrou tamanha maestria e experiência para lidar com cada passagem
secreta e atalho disponível, mesmo chapado. Os dois deixaram algumas pessoas
para trás, assim como casas, barracos e dois campos de futebol que havia na
comunidade. O cafuçu tomou a parte de cima, mais íngreme da comunidade, e
atravessou a pequena selva de árvores frutíferas do alto da favela, onde
pouquíssimas pessoas tinham acesso. Enquanto andavam, Natan se concentrou em
não deslizar muito para os lados, além de tentar não apertar John John em
demasiado. Por outro lado, pôde aproveitar o deleite de tocar aquele por quem
estava interessado nos últimos dias, sem a sensação de culpa por não ter
consentimento para tal ou algo do tipo. Os dedos sentiram a dureza do tórax do
bandido e quiseram levantar a blusa para tocá-lo na pele, porém foi até bom que
isso não tivesse acontecido, caso contrário o interior do universitário teria
voltado a entrar em ebulição, bem no momento em que mais precisava de se
concentrar para não acabar caindo da motocicleta. Tudo isso somado à dúvida
crescente de querer saber para onde estavam indo. Foi quando, do ponto máximo
da colina na qual a favela se instalara, John John parou a moto e finalmente
desligou o motor, permanecendo em silêncio sem sair de cima dela. A mão do
parceiro ainda em seu tórax, como se não quisesse acreditar que o momento havia
chegado ao fim. O traficante tirou a arma do pescoço e se preparou para sair.
Ao redor, só mais algumas árvores adiante, numa espécie de penhasco, uma
casinha abandonada ao lado e a estradinha inacabada pela qual os dois vieram na
moto. O céu mais próximo do que nunca, apesar de tomado por muitas nuvens e,
consequentemente, nenhuma estrela visível.
-
Chegamo, fiel!
O
cafuçu caminhou em direção à casinha e, assim que entrou, já acendeu a luz. Era
só uma salinha com sofá, mesa, frigobar e um banheiro em anexo, bem pequeno e
jeitosinho, apesar das roupas jogadas por cima de um cesto. Natan seguiu o
marginal e ficou de pé, esperando por uma ordem, ao mesmo tempo que observando
o lugar e analisando.
-
Você mora aqui? - fez a pergunta sem medo, se esforçando para não transparecer
nervosismo, muito embora o tamanho da arma ainda o incomodasse bastante.
A
todo instante, não saiu da mente a sensação de que poderia ser morto a qualquer
momento e ninguém nunca mais sequer encontraria seu corpo, que muito
provavelmente seria queimado, completamente carbonizado, e assim absolutamente
irreconhecível. Fim de vida, entre outras palavras. Totalmente evaporado. Como
pôde chegar até ali?
- Aham!
- a resposta veio animada.
John
John tirou os embrulhos do bolso da bermuda, abriu um deles e começou a agrupar
um apanhado de erva triturada. Na outra mão, preparou um papel de seda para
receber a maconha e foi ajeitando no formato do pré-cigarro, manuseando tudo
conforme o ritual típico de quem sabe enrolar muito bem um baseado.
-
Esse é o meu setô! - terminou de responder antes de lamber o lábio e umedecer a
língua para passá-la na parte gomada do papel de seda. - Pra cá que eu arrasto
as envolvida! hahahaha
Ele
fez todo o procedimento com bastante empenho, tornando a encarar Natan com o
par de olhos meio vermelhos e bastante intensos. A língua molhou o papel nesse
momento, e em seguida colou.
-
Gostô?
Natan
tornou a observar ao redor e respirou fundo o delicioso cheiro de cômodo meio
velho. Aí fez que sim com a cabeça e admirou a visão do cafuçu jogado na
poltrona, acabando de aprontar rapidamente o baseado que fumariam juntos.
-
Aproveita e pega a droga que tu quiser ali naquela gaveta, ó. - apontou para
uma pequena estante e deu a deixa para que o rapaz não saísse de mãos vazias,
tal qual quase acontecera, por culpa do WL.
Natan
obedeceu, até que John John levantou e foi andando para o lado de fora da casa,
chamando o universitário consigo e sendo prontamente atendido. Juntos, eles
caminharam para a parte interna das árvores sobre a beira do penhasco onde
estavam, o marginal sempre na frente, seguido de um Natan inseguro e ao mesmo
tempo muito curioso. Quando finalmente pararam, o cafuçu abaixou-se e ficou
agachado, virado de frente para o precipício mais alto da colina. O estudante
então olhou para frente e só então entendeu o porquê de tanta demora e mistério
até chegarem ali: o cume da comunidade garantia a vista panorâmica de todo o
perímetro e área ao redor. Não fosse o céu nublado, Natan certamente estaria
vendo, no mínimo, os próximos 4 ou 5 quilômetros ao redor do bairro da zona
norte. Como as nuvens bloqueavam as estrelas, os brilhos ficaram por conta das
janelas iluminadas e luzes acesas em cada barraco no campo de visão. Abaixo
deles, o silêncio noturno de milhares de vidas importantes, vivendo um estatuto
diferente das vidas que estavam fora dali. Poucas ruas à frente da saída da
favela, dois carros de polícia passando devagarzinho, num cenário completamente
favorável para os traficantes da comunidade predizerem os passos de quem quer
que ousasse entrar em sua região. Controle total ou quase isso, a julgar pela
visão que Natan estava tendo diante de si. Ele quase se esqueceu do marginal ao
seu lado, lembrando-se dele só pelo fato do mesmo ter acendido o baseado que enrolara
antes de chegarem ali. O dedo grosso de John John cruzou com força a pedra do
isqueiro, produzindo a faísca que acabou por incendiar o gás combustível e dar
início ao processo de combustão. Isso aconteceu no meio do escuro da selva,
então a luminosidade chamou a atenção do universitário, que não conseguiu não
encarar o cafuçu enquanto ele acendia o cigarro de maconha. John John usou uma
mão para impedir que o vento apagasse o fogo, só que os olhos não saíram da
direção do estudante. Como se não bastasse, a luz do isqueiro só fez ressaltar
o incomum brilho vermelho sangue em seu visual, como se as pupilas fossem
carmesim, estando muito acima de um simples avermelhado por conta de THC. Havia
algo mágico naquele olhar, algo de.. malandro, marginal, bem malicioso. A
sensação de curiosidade e medo de Natan foi se transformando, então, num tipo
de atração pelo lado sensual do cafuçu, que se manteve na linha desde sempre.
-
Qual foi? - o bandido falou baixo, depois de ser observado durante tanto tempo
e numa distância tão próxima, que se sentiu à vontade para perguntar. - Tá me
olhando?
Um
abaixado do lado do outro, ambos na ponta do precipício.
- Não
é nada! - o outro mentiu.
John
John puxou a fumaça do beck para os pulmões, segurou e tampou as narinas, como
parte do processo de fazer a cabeça. Os olhos ficaram ainda mais vermelhos, se
é que possível, contrastando pesadamente com o loiro gema dos pelos no corpo de
moleque marrento. Um fogo vivo em físico de gente!
-
Ssss! - gemeu bem relaxado ao soprar a fumaça, sentindo cada vaso sanguíneo
sendo saturado de THC, dilatando num delicioso e extensivo relaxamento. - Esse
kunk tá o verme, fiel!
Natan
só conseguiu ficar em silêncio e acompanhar a transfusão volátil com os olhos
bastante atentos. O marginal puxava a fumaça e deixava que parte dela escapasse
da boca, subindo diretamente ao nariz e sendo tragada em seguida. O cenário
ficou lotado dos vapores densos da erva, mas tudo sendo rapidamente absorvido
pelos pulmões sedentos e enormes do cafuçu, que continuou brincando de
liquefazer e sublimar os fluídos responsáveis por seduzir Natan. O jeito de
controlar a fumaça, a maneira com a qual estava administrando o bom momento com
o parceiro ali, tudo estava funcionando para catalisar um sentimento fervente e
bastante envolvente para ambos. Os dois sabiam bem que aqueles minutos eram no
mínimo diferentes de qualquer situação anterior. Até que o traficante passou o
baseado e foi a vez do universitário fumar. Nesse instante, mais fumaça
soprada, agora diretamente na direção do rosto do jovem, que não teve escolha
se não respirá-la, vindo quente do pulmão do marginal. O cheiro forte de
maconha indo longe, assim como os jatos intensos de vapor, que continuaram
sendo produzidos por ambos, bastante entretidos em revezar o beck e partilhar
da mesma onda, sendo ela de frio ou calor. Ao redor, a meteorologia seria a
responsável por amenizar a temperatura e exigir que a união fizesse a força, tudo
em prol da sublimação. Conforme o fumo avançou junto com a noite, o clima
também se fez mais frio por fora, deixando os amigos mais à vontade para se
chegarem para perto por dentro: o espaço entre eles diminuiu, ainda agachados
na ponta do relevo, praticamente lado a lado. O sereno começou a se confundir
com chuvisco e esse foi o estopim para que ambos ficassem praticamente colados,
dividindo o mesmo curto espaço sob uma folha aberta de uma das árvores altas do
penhasco. Minutos de puro e genuíno THC sendo transfundido de um corpo marginal
a um físico estudantil, adensado e infundido de uma corrente sanguínea à outra,
como se um deles fosse uma máquina sob pressão, por isso precisava de ministrar
equilibradamente a intensidade de tantos cavalos-vapor entorpecendo os
sentidos, o fôlego, o peito em chamas, o interior em perfeita ebulição. Numa
estase química tão calorosa que nem mesmo as pontes de hidrogênio poderiam
explicar tantas trocas gasosas acontecendo aos olhos nus. Na hora em que sentiu
a onda batendo e o calor crescendo dentro de si, Natan começou a soprar a
fumaça, aí abriu os olhos e não conseguiu parar de observar John John.
-
"John John.." - pensou baixinho consigo e imaginou que fosse um
suposto nome de guerra, já que se tratava de um marginal.
O
cafuçu tava virado para o outro lado, mirando o longe com os olhos vermelhos e
reluzentes. Uma de suas tatuagens, logo atrás da orelha e próxima ao pescoço,
era a de uma chama bem vívida e em tom carmesim, com amarelo vivo quase queimando
a pele morena. Pouco mais abaixo, a alça da arma, que também era de fogo, o
objeto que sempre acelerava o coração do universitário quando percebido. O
coração deu logo um salto a mais, principalmente pela contínua e detalhista
visão privilegiada que estava tendo, por ter John John tão próximo de si, quase
o tocando. E quando se tocavam..!
-
Qual foi? - o marginal perguntou antes mesmo de virar o rosto bem devagar para Natan.
Estava
atento com o rabo de olho, bastante malicioso, por isso percebeu a atenção.
Olhos nos olhos, vislumbre carmesim e o brilho ígneo de sempre. Bastava uma
fagulha para que o vapor se transformasse em chama. Combustível.
- É
que..
Natan
estava muito mais lento do que o normal, como se existisse muita coisa além da
maconha naquele momento. Demorou um pouco, mas não deixou de dizer.
- Eu
estou me perguntando qual é o nome de um cara que tem o apelido de John John. -
riu mesmo, sem controlar, tamanha carga de relaxamento sentiu.
Estava
sendo sincero em toda sua verdade, liquefeita dentro de si. E aquecida pela
proximidade do vapor. O cafuçu deu o riso bem puto de canto de boca, parou de
olhá-lo e o fez só pelo simples fato de voltar a encará-lo em seguida. Estava
renovando o efeito causado pelo vislumbre, pela encarada refeita. O impacto das
chamas estava tendo novo início. O combustível!
-
Papo reto?
O
estudante só fez que sim com a cabeça e apoiou o queixo na mão, o cotovelo na
perna, tudo para continuar relaxado e observar seu objeto de afeição. Bigodinho
loiro e bem fino sobre o lábio superior, que por sinal era um pouco carnudo.
Cabelo curto e também descolorido, camiseta expondo os braços e o corpo todo
dobrado para se manter abaixado e meio entocado entre algumas plantas e
árvores. Em volta deles, nem os céus
aguentaram a pressão latente vinda de baixo: moléculas de água foram aquecidas,
a agitação das partes foi aumentando, e aí veio a precipitação. A primeira gota
não os atingiu, já que ambos estavam debaixo de uma enorme palma de folha de
mamona crescendo por cima da vegetação selvagem, à beira do precipício da
comunidade.
- Mistério
nenhum, fiel! - John John começou a explicar, bastante desinibido. - A minha
coroa era fã de um viado, tal de Elton John, se ligô? Papo de cantor famoso,
sabe coé?
Natan
demorou, mas fez as conexões mentais necessárias para se lembrar de quem era
aquele nome no mundo dos famosos. A imagem do músico de oclinhos veio à mente e
aí ele riu com vontade, bem solto aos efeitos da maconha percorrendo o sangue.
- Meu
nome é Elton, mas os menó apelidaram de John John. - a risada voltou ao canto
da boca. - Virô nome de guerra. Se ligô, fiel?
Outra
vez o universitário fez que sim com a cabeça, tendo saciado a própria
curiosidade para com o parceiro bem disposto ao seu lado. Em volta deles, as
duas viaturas lá em baixo, no plano do bairro, já estavam bem distantes dali,
só que as gotas d'água continuavam caindo aos poucos do céu. Frio externo,
calor interno. Sensação de umidade relativa do ar: 65%.
- E
tu?
Natan
até abriu um pouco mais os olhos pela pergunta inesperada. O físico quente
estava mais do que disponível, o cérebro morno manteve a sinceridade e o deu a
energia para prosseguir.
- Eu
me chamo Natanael. - esperou um pouco, quase nada. - Mas me chamam de Natan.
John
John riu e insistiu.
- E
tu faz o que?
Levou
o baseado à boca, tragou mais fumaça e segurou.
-
Trabalho numa empresa bosta e estudo de noite.
A
resposta fez o marginal gargalhar alto.
-
Empresa bosta? - repetiu as palavras.
Natan
fez que sim com a cabeça e riu junto com ele, se entregando à deliciosa e nada
difícil físico-química crescente. Conforme o riso foi cedendo ao preenchido e
tímido silêncio, John John seguiu fumando o baseado e produzindo seus vapores
que seriam tragados passivamente pelos pulmões atentos do universitário.
-
Vai brotar na Gaiola sexta?
O
outro levou alguns segundos até entender a pergunta.
-
Gaiola? - optou por tirar a dúvida.
-
Baile, pô! - e outra puxada no baseado. - Sexta geral daqui cai pra lá!
Natan
esperou mais um pouco.
-
Você vai?
-
Eu? - o marginal pareceu não entender. - Quem dera, vô tá de plantão aqui!
Favela fica vazia, fiel! Ninguém, ninguém! - insistiu.
Outra
tragada forte e mais fumaça sendo produzida ao redor, até que ele se lembrou de
responder.
-
Acho que vou ficar em casa estudando pras provas. - o semblante de emburrado
denunciou que não era bem o que pretendia fazer.
Num
dado momento de tranquilidade, o cafuçu olhou para o plano do bairro abaixo de
seus pés e se manteve atento às pequenas luzes sumindo e aparecendo lá em baixo.
Chapado, começou a sorrir consigo mesmo e aí olhou para Natan, apontando em
seguida lá distante e voltando a dizer.
- Tu
mora lá de baixo?
O
outro nem pensou antes de fazer que sim com a cabeça e ainda completar,
apontando especificamente para uma rua situada na entrada de uma praça em
formato circular.
- No
final da 14!
Ao
fazê-lo, o braço de Natan saiu da cobertura proporcionada pela enorme palma
acima dos dois, ficando totalmente livre para interagir com a água cadente das
nuvens. As poucas gotas que tocaram sua pele pareceram tão geladas que ele teve
que retornar o corpo, quase como se tivesse se machucado. Foi a sinestesia
termológica mais surreal que sentiu, chegando bem perto da dor. Ou seria culpa
da maconha? Quem sabe até de Elton John?
-
Qual foi? - o marginal percebeu o recuo.
Natan
não queria dizer, mas sentiu a quentura e uma tonteira incomum começando a
dominar o corpo. Temeu o risco de acabar passando mal e optou pela sinceridade.
-
Nada, é que..
O
céu ficou tão denso que deu a impressão de querer descer até onde eles estavam
só para escutar o que viria a seguir, incapaz de permanecer em sua condição de
cenário ou mero telespectador.
- Eu
acho que tô com um pouco de febre, então talvez seja melhor..
Socializado
no meio da rua, John John usou do conhecimento prático que possuía, sua maior
arma de fogo. Ah, e o próprio fogo em si. Ele nem hesitou, tirou a mão da arma
pendurada no pescoço e colocou a palma grossa ao redor do ombro de Natan,
seguindo para a nuca e circundando os dedos calejados pelo pescoço do mesmo.
Acima deles, as nuvens não resistiram à timidez de se manterem na mesma
precipitação delicada até então. Os ventos do céu deram a ordem e tudo apenas cedeu
à pressão-vapor da físico-química Natan-John John. Sensação de umidade relativa
do ar: 80%. Muita água caindo, céu reluzindo tanto quanto os olhos quentes e
vermelhos do marginal, que continuou a passar a mão grossa e calejada pela pele
sedosa e pouco mais sensível de um macho menos vivido. Natan tava só começando,
por assim dizer, num jogo onde John John dominava. E cá se chega à dominação.
- Tá
não.. - ele falou devagar e o hálito acalorado foi inevitavelmente soprado de
leve no rosto do estudante, de tão perto que estavam um do outro. - .. fiel.
Terminou
a frase e a fumaça saiu da boca para ser puxada pelo nariz. Cara a cara os
dois, a mão ainda passando pelo pescoço quente do parceiro e procurando algo a
mais do que a temperatura indicativa do estado febril. Só que o marginal jamais
entenderia o porquê daquilo, por dois simples fatos: primeiro que ele era
quente por si só, então estava na mesma temperatura ou até mais quente que
Natan, sendo naturalmente incapaz de conceber uma ideia de febre; e segundo que
ele mesmo era a causa daquele estado. A água apaga sim o fogo, porém, se ela
não o faz há tempo, se o fogo ganha proporção, dimensão e tempo suficientes
para se expandir e lamber tudo que existe ao redor, então ele se torna capaz de
evaporá-la, sendo difícil controlá-lo, dominá-lo e extingui-lo. Chamas de água
atravessaram a pele de Natan, rasgando suas células com moléculas químicas
pressurizadas e agitadas por tamanha energia concedida pelo excesso de
temperatura, num rasgão implodindo de fora para dentro, revirando as entranhas
ao avesso e queimando de tão frio. Ou quente? Clímax e catálise estavam se
confundindo numa deliciosa sincronia da natureza calorimétrica dos corpos, a
ponto de causar inveja em qualquer teoria termodinâmica que se predisponha a
explicar o contato da sublimação entre homens.
-
Não tô me sentindo muito..
A
impressão do desmaio foi eminente e aí ele quase se desequilibrou da pedra que
o sustentava sobre o penhasco, sendo apoiado pela mão enorme ajudando a manter
o equilíbrio. John John pegou o tórax do estudante e percebeu que era real, ele
estava mesmo passando mal.
-
Ih, qual foi, fiel? Vai cair não!
A
mão calejada tornou a encher no peitoral de Natan e o apertou com os dedos
duros, de tanto carregar fuzil pra cima e pra baixo. O traficante fez a cara de
atenção redobrada, apoiou o corpo do colega em seu ombro e foi se levantando
devagar, sendo parcialmente ajudado por um universitário com pouco controle de
si, porém se mantendo o máximo de pé possível.
- Segura,
menó! - ele ergueu a si e ao outro. - Segura que vô te tirá dessa chuva!
John
John colocou a arma para a lateral do corpo e foi andando em passos curtos,
porém firmes pelo caminho de volta por onde haviam passado anteriormente. A mão
atravessada na cintura de Natan foi suficiente para escorá-lo e ajudá-lo a
caminhar de volta até a casinha da qual partiram, no começo da trilha sobre o
penhasco. Em poucos minutos, o cafuçu subiu no automóvel e ajudou o mais novo a
montar na garupa, colocando os braços do mesmo em torno de seu corpo para
evitar que caísse. Foi só escutar o ronco da moto que Natan perdeu totalmente a
consciência mental, mantendo apenas a física para continuar equilibrado e bem
preso. Ele sentiu todo o vento frio e as gotas d'água passando ao seu redor e
isso trouxe o maior frio de todos, que só não o fez tremer por causa daquela
fonte de calor que estava segurando: Elton John, um sol explodindo em si.
-
Segura, fiel! Não cai! - o mais velho apertou a mão do parceiro em seu tórax e
a segurou por breves segundos, guiando a motocicleta com uma única.
Em
seguida, olhou de relance para o lado e percebeu que o universitário estava de
olhos fechados e bastante pálido, quase branco, então parou exatamente onde
estavam e fez o que julgou necessário.
- Toma,
isso vai dá um gás!
Removeu
a própria touca preta e colocou na cabeça do garupa, protegendo os ouvidos e
quase que cobrindo seus olhos, para proteger os sinos. Tornou a prendê-lo a si
e continuou seguindo com a moto pelas estreitas vielas e ladeiras íngremes da
comunidade, pilotando com a maestria de quem fora nascido e criado ali. As
lombadas, propositalmente altas para impedir a circulação de transeuntes
indesejados na favela, quase faziam Natan quicar no assento, e era justamente
nesses rápidos instantes que ele abria ligeiramente os olhos e se dava conta do
que estava acontecendo: estava agarrado ao corpo duro, negro e quente daquele
que não conseguia parar de pensar ultimamente, sendo conduzido até à entrada da
comunidade pelo traficante que não saiu da cabeça nos últimos dias. Quando se deu
conta disso, as mãos apertaram ainda mais o físico marginal de John John, que
se manteve focado em chegar ao destino final. Até que, num dado beco, a
motocicleta parou e o pé do malandro tocou o chão, o veículo todo apagado. O
universitário sentiu tombar um pouco de lado e abriu os olhos, se dando conta
de que estava no destino final, no pé do morro. Tonto e mais quente do que
nunca, ele já ia colocar um pé no chão para sair, quando a mão do cafuçu
praticamente abraçou seu antebraço e o impediu de prosseguir.
-
Pera..
Outra
vez o contato fez a temperatura interna subir. O motor voltou a ligar bem
baixinho, Elton John olhou para um lado, depois para o outro e foi dando ré
devagar, como quem não queria nada. Avistou um homem escondido por trás de uma
casa abandonada e o chamou por um assobio. Alto, careca, moreno e com um dos
braços fechados de tatuagem, o mal encarado atendeu ao chamado e veio ver do
que se tratava.
-
Manda, John John!
O
bandido então jogou a arma com força em sua direção e avisou.
- Vô
dar um rolé na pista e já volto!
O
parceiro de crime arregalou os olhos, mas fez que sim com a cabeça.
-
Atividade aí, cria! Atenção nos ganso!
- Xá
comigo, pivete!
Aí
tornou a seguir pela saída do morro, foi quando Natan se deu conta do que
estava acontecendo e decidiu interpelar.
-
Você não pode sair da favela, John John. Me deixa aqui que eu vou sozinho, é
melhor! - ele arriscou chamar pelo apelido.
O
rosto dividido entre o pálido e o avermelhado, de tão fora de si em integridade
física. O que estava acontecendo, afinal de contas?
-
Fica mec aí, fiel! Deixa com o pai que o pai resolve tudo.
Ele
tornou a apertar a mão no braço do estudante ao redor de seu tórax, abaixou um
pouco a cabeça e foi devagar pelo canto da rua lateral, que estava vazia àquela
hora da noite. Nenhum sinal de polícia ou qualquer outra movimentação, apenas
os dois rapazes e a chuvinha caindo de leve, molhando a pele de Natan e
mantendo seu corpo numa catarse inexplicável de temperaturas em guerra. De um
lado, o sereio pedindo para mergulhar em águas profundas; do outro, o malandro
ansiando pela oportunidade de secar a fonte diante dos olhos. Se não tivesse
sido estudada anteriormente, aqui estariam as novas teorias e postulações para
a termodinâmica e toda sua potência expressa em cavalos-vapor. Energia, joule,
deslocamento, tudo estava acontecendo na mais pura calorimetria entre corpos.
Natan sentiu o corpo fazendo pequenas curvas e aí abriu os olhos quando tudo
parou: estava diante de casa.
- É
aqui?
-
Como você..?
O
outro só saiu de cima da moto, desligou o motor sem fazer muito alarde e
estacionou devagar no canto da calçada, evitando ao máximo as casas com câmeras
ao redor. O universitário olhou para ele e pensou por alguns segundos sobre o
que fazer. Seria estranho convidá-lo? Mas foi só abrir o portãozinho pequeno de
madeira que a resposta surgiu espontânea, com Elton John colocando os dedos
grossos em seus ombros e o guiando como se quisesse ter a certeza de que estava
bem, muito embora não soubesse exatamente o caminho exato de entrada. Entrou.
-
Tudo bem, eu acho que consigo sobreviver.
- Tu
tava branco, fiel! Dá uma olhada no espelho pra ver se tá bem mermo, papo reto!
- teimou com o colega.
O
mais novo sorriu e novamente sentiu a tonteira vindo de longe, apoiando-se no
balcão lateral da entrada da cozinha para não cair com tudo no chão. O
despencar seria inevitável.
- Tô
dizendo, Natan! - a primeira vez que o chamou assim.
O
cafuçu adiantou o passo e o segurou novamente, ajudando a ficar de pé.
- Tá
bem porra nenhuma, tu vai direto pra cama!
Sem
hesitar, ele deu um impulso e tirou os pés do outro do chão, segurando o
estudante no colo e caminhando rápido para onde imaginou ser o quarto. Elton
John viu somente duas portas abertas, sendo que a primeira estava evidente que
era o banheiro, por conta da pia visível de longe. Entrou pela segunda, nem
acendeu a luz e já colocou Natan deitado na cama de solteiro, fazendo questão
de cobri-lo com o edredom que estava ao lado, dos pés à cabeça. Ainda no breu
absoluto, desceu ainda mais a touca preta para ajudá-lo a se aquecer, ficando
de pé ao seu lado por alguns minutos antes de ter a certeza de que nada
pioraria. Em alguns minutos, o marginal viu a poltrona de solteiro perto da porta
do quarto e a posicionou virada para a cama, sentando em seguida. Ali estava
ele, todo grande e no mais puro contraste com toda a organização do quarto de
um estudante. Livros, estantes, teorias, práticas, computador, tudo
completamente diferente do universo de um traficante favelado e marginalizado.
Trabalho, por que não? Elton John esticou um pouco as pernas, apertou os braços
da poltrona com as mãos de segurar fuzil e jogar granada, e em seguida fechou
os olhos no escuro absoluto do quarto. Mesmo sem muita visão, ele teve a
certeza de que a temperatura de Natan havia subido quando escutou a respiração
ficando cada vez mais estável e possivelmente tranquila. Sentiu que pegaria no
sono em questão de minutos e aí se levantou sem fazer barulho, indo pra perto
do universitário e se certificando de que ele estava perto de ficar bem outra
vez.
-
Por que você.. - o mais novo começou a gemer, como se estivesse sonhando
acordado e delirando pelo suor sendo expelido do corpo no meio do estado
febril.
A
pouca distância com a fonte de calor que era Elton John trazia essa sensação de
secura úmida, labareda aquática, fogo líquido. Um jato certeiro de éter
diretamente na essência interna de ambos, independente de ser água ou fogo: a
magia estava dentro da mistura. O cafuçu ficou curioso e abaixou um pouco o
rosto para identificar se o parceiro estava acordado ou não, além de consciente.
Sentiu o calor de sua pele tão diferente da sua e ficou parcialmente imóvel com
aquela curta distância e temperatura tão atraente.
- Por
que você não.. - o outro gemeu inconscientemente.
O
físico delirando pelo excesso de calor perto de si. Até que, num momento onde
simplesmente não existiu mais tempo, como se tudo tivesse sido incinerado ou
congelado, os dois ficaram cara a cara, um atento e outro perdido entre sonho e
realidade. Natan estava numa realidade parecida com a visão de raio x daqueles
óculos e câmeras que detectam temperaturas, vendo um brilho sinérgico ser
emitido do meio do breu de seu próprio quarto. Uma caldeira humana funcionando
à pressão de mil cavalos-vapor, há pouquíssimos palmos de si, reluzindo como um
farol explodindo em milhões de labaredas ao longe.
- Eu
não..? - Elton John disse baixo, como se quisesse instigá-lo a responder sem
despertá-lo do delírio.
A
pausa se deu e o momento durou para sempre, só que por alguns segundos. Foi
eterno e avassaladoramente mágico: o suor teimoso, irônico por ser água, veio
escorrendo da testa do malandro feito de fogo, e, da ponta do queixo, pulou em
cheio no canto da boca do estudante, dançando entre a linha dos lábios e a
parte interna das papilas. O toque da gota chegou a expelir fumaça do corpo de
Natan, como se fosse o encontro de um jato d'água com uma chapa incandescente,
produzindo muito vapor para acirrar as diferenças termológicas entre ambos.
Calefação homoerótica. O mais novo então se encolheu naquele momento e reclamou,
ainda perdido de si. Sensação de umidade relativa do ar: 85%.
-
Frio, muito frio! - os dentes chegaram a bater.
Natan
estava mesmo delirando, realmente perdido entre a fantasia e a realidade, não
sabendo bem discernir entre um e outro. Ao perceber aquilo, John John sentiu a
passagem do tempo bastante arrastada e decidiu que apenas uma coisa poderia ser
feita. Virou-se de costas para a cama e andou na direção de saída do quarto.
Abriu a porta e, antes mesmo de levantar um dos pés, tornou a escutar a súplica
involuntária do colega batendo os dentes de tanto tremer.
-
Ffffrio! Grrrrrh!
O
marginal fechou os olhos e cerrou o pulso, assentindo com a cabeça. Aquela
seria uma noite longa e muito necessária para ambos, no sentido de revelar o
que poderia não estar tão evidente assim até então. Talvez a madrugada tenha
durado muito mais do que as seis comuns horas de sempre, principalmente porque o
calor dá uma sensação de que os dias podem acabar sendo mais longos. Como a
magia acontece na mistura, podemos sair da dualidade entre inverno e verão e
começar a mergulhar na síntese entre os dois, e aqui não me referi mais às
estações que estão por vir. John John fechou a porta do quarto, só que ele
estava do lado de dentro do mesmo. Decidido, ele virou novamente para Natan,
que ainda estava se tremendo sob o edredom, e concluiu o que deveria fazer. Durante
a madrugada, saiu o plantão meteorológico. Sensação de umidade relativa do ar:
90%. Será que choveu dentro do quarto?
4. PRESSÃO
Na quinta-feira, pela manhã, Natan
acordou num pulo e completamente de volta a si. Literalmente num pulo mesmo,
porque teve a repentina sensação de que estava atrasado antes mesmo de se
despreguiçar. Atento, ele saltou da cama e foi direto no celular, que não
estava carregando na cozinha, como costumava deixar. Ainda zonzo, retornou ao
quarto e só então se deu conta de que estava todo molhado.
- O
que!? - olhou para as próprias vestes e, a princípio, cogitou ter urinado
enquanto dormia, por isso reagiu com espanto. - Não é possível!
Aí
foi até o banheiro e se olhou no espelho, só para constatar a cara amassada de
quem pareceu ter bebido além da conta, por isso apagara sem lembrar muito do
que aconteceu. Devagar, o universitário retornou ao quarto e olhou para a cama
onde dormiu, se dando conta do cheiro e da quantidade de umidade permeada ali.
Tocou o lençol com a ponta dos dedos e esse contato com a água de outro corpo
foi suficiente, junto com o odor, para dar início à tona de sensações físicas
que começaram a aflorar por entre a pele, o físico, o corpo e a mente. Ele se
viu derrubado no colchão, com o nariz inspirando o máximo daquele cheiro forte
de algo que era recentemente familiar. Aí a mente em branco foi parindo os
primeiros focos de lembrança nítida que poderiam estar vivos pelo pensamento,
começando pela volta para casa. Natan recordou da paisagem vista de cima do
penhasco, lembrou-se do papo sobre baile e nome com o marginal que era seu
amigo, e a partir daí foi consequentemente atirado lá de cima, retomando a
febre e o contato físico com o mesmo. Com o mundo virado de cabeça para baixo e
a queda no solo se tornando inevitável, o estudante sentiu o vapor afobado
saindo dos pulmões de John John e sendo injetados com muita pressão por sob sua
pele, como se fossem agulhas de potência calorífica atravessando o corpo e
pedindo abrigo. Uma espécie de energia que não tinha matéria e que, por isso,
precisaria de um hospedeiro para acontecer, existir, ainda que muito
brevemente, por pouquíssimos minutos. E aí estava a questão: não estava sendo
necessariamente temporário. Estava durando e cada vez maior, considerando tudo
que ocorreu após Natan entrar em contato físico com o cafuçu. Pois bem, ele se
lembrou da febre e do retorno à base do morro. O cheiro do cangote de John John
tomou conta de si tanto quanto o odor de suor em sua cama, havendo qualquer
sinergia entre uma coisa e outra, muito além do caminho do morro até à rua 14, onde
morava. Aí o estalo!
- O
John John me trouxe em casa! - quase um espanto de percepção. - Caralho, que
mico!
Em
seguida, Natan começou a pensar no que diria quando tornasse a encontrar o
colega, considerando que estava se sentindo envergonhado e sem jeito depois de
todo aquele trabalho dado. Lentamente, as pequenas cenas de quando estava
dormindo e acordando ao longo do trajeto foram sendo cimentadas mentalmente: a
parada para John John entregar a arma para o outro vapor no pé do morro; o
deslocamento suave até à parte baixa do bairro, com todo o cuidado para não
desequilibrá-lo; até mesmo a segurança em abrir o portão e andar até o lado
interno da casa. E depois? Eis que o estudante então olhou para cima e se fez a
seguinte pergunta, ainda alisando o colchão molhado:
-
Será que choveu dentro desse quarto?
No
teto, nem a menor mancha de goteiras para sustentar aquela tese, então ele
imediatamente começou a pensar em outras teorias plausíveis para explicar tanta
umidade. A mão ainda mexendo pelo lençol, até que os dedos encostaram num
tecido cuja textura pareceu diferente. Puxou para fora e se deu conta de que
era a touca preta que John John estava usando na noite anterior, quando o
trouxera até ali.
-
Isso é..
A
resposta foi dada em gesto, com a roupa vindo diretamente ao nariz e sentindo o
cheiro forte que o marginal possuía, principalmente na cabeça. Um cheiro
característico de macho que habita o morro, não pertencendo a um mero tipo de
rua. Na favela, eram as ruas que a ele pertenciam, numa vaporosa inversão de
valores garantidas pelo poder paralelo, muito acima dos dois. Natan então
misturou todos os cheiros do quarto e os pulmões não conseguiram sustentar
tamanha carga hormonal masculina. Devagar, ele desceu ao lençol e esfregou o
rosto em todo o líquido sobre a cama. Foi quando a mente acelerou
repentinamente e, tal qual um veículo desgovernado, saiu atravessando tudo
quanto foi placa, poste, árvore e acostamento no meio do caminho mental. Uma
turbulência de fatos inconscientemente divididos entre fantasia e realidade,
tudo acontecendo numa perspectiva de visão termológica, já que Natan estava
delirando de febre quando tudo que veio em seguida aconteceu.
-
"Por que você não.."
A
pele da cara juvenil se viu arrastada e insistentemente friccionada contra o
colchão umedecido por um líquido até então desconhecido. Na ponta do lábio
inferior, Natan sentiu a gota incandescente caindo, numa temperatura de 1000°,
capaz de atravessar sua pele, perfurar sua carne e carbonizar IMEDIATAMENTE
todas as entranhas, transformando em cinzas de forma espontânea qualquer
liquidez ali existente. A língua sentiu o que nenhuma outra parte de seu corpo
era capaz de sentir, que foi o que respondeu tudo que estava acontecendo até
então: aquilo na cama era suor. A gota que o rasgara de fora para dentro também
foi de suor. O cheiro em seu físico, o peso sensorial e todos os resquícios da
presença de um macho dentro de seu quarto, dentro de sua madrugada, talvez
dentro de si, tudo aquilo consistia em apenas um fluído corporal: o suor. A
mente, saciada pela resposta, foi anuviando em calma e paciência, dando lugar
aos detalhes que ele supôs jamais conseguir imaginar novamente, já que estava
delirando quando aconteceu. Quando estava deitado no escuro absoluto, Natan viu
John John se preparando para ir embora. Ele abriu a porta e a única coisa que o
universitário conseguiu dizer foi sobre a reclamação de sempre.
-
"Friooo!"
Ele
viu a porta se fechando em seguida e não escutou mais nada. O escuro do quarto
retornou ao seu absoluto e a visão se desfez da luz, dando lugar àquela capaz
de enxergar altas temperaturas na ausência de claridade. Só então ele, mesmo
perto de inconsciente, percebeu o movimento na lateral da cama. O edredom
levantando devagar, o corpo se ajustando ao seu enlace e as coxas peludas se
sobrepondo às suas. Será que não foi sonho?
-
Cara, eu tô muito louco! Né possível!? - ele mesmo não soube discernir.
E se
foi delírio? E se a febre causou tudo aquilo em si, aproveitando-se do fato
dele estar quimicamente envolvido com um marginal? Como separar fantasia de
realidade? As mãos esfregando o suor na cama tornaram a dar mais respostas,
semelhante a como fizera a língua. Natan recordou do peso do corpo sobre o seu
e de membros que pareceram mãos o abraçando e o ajudando a se manter quente. Em
pleno contato com as costas, um paredão incandescente, cuja superfície
maçaricada à alta temperatura era responsável por respirar e manter o corpo
ígneo de um malandrão, além de fornecer energia para quem quisesse e precisasse
ao redor. Por isso ali estava, segundo a consciência poderia afirmar. Ou não? E
se fosse delírio? Afinal de contas, Natan estava querendo dizer que John John
não era apenas um bandido pelo qual estava se apaixonando, como também uma
estrela em fusão nuclear interna, explodindo em energia para além de si.
-
Que loucura!
Ele
ainda se deu ao luxo de ficar uns bons minutos deitado na cama, sentindo o
possível cheiro do suor de outro macho espalhado por sua roupa e por si mesmo.
Todo o resultado do aquecimento produzido por aquele malandro, mediante sua
emissões de vapores incandescentes, sendo projetados através da pele e do
corpo, em intensa radiação. A físico-química precisaria de novas leis
termodinâmicas, caso o interior de Natan fosse estudado exatamente naquele
instante, deitado e vislumbrando o deleite em se banhar no suor alheio. Somente
ali a febre inexistia. Mais que um ritual de cura, para o universitário era
sinal de sinergia interna. O calor é sempre transferido de forma espontânea do
corpo de maior temperatura para o de menor temperatura, sendo que todo processo
nunca é completamente eficiente, o que implica em perdas para o ambiente. Ali
estava o ambiente de Natan, e ali ele detectava cada sinal de perda, para poder
se deixar seduzir por cada uma delas.
A quinta-feira seguiu
indubitavelmente tentadora. Natan escondeu as drogas compradas para o amigo no
fundo falso da mochila e seguiu o dia como se fosse um outro qualquer, com
exceção do fato de que agora existia um calor que não pertencia a si em seu
corpo. Algo totalmente incomum, que não acontecera anteriormente, e que agora o
fez sentir até outro cheiro impregnado no próprio físico a todo momento. Até no
trabalho, uma das assistentes comentou que o perfume do rapaz estava diferente.
Ele chegou a ir ao banheiro, checou as axilas, mas não se tratava de um mau
odor, era apenas bem diferente do seu normal. Na faculdade foi a mesma coisa, o
amigo que pediu para Natan comprar as drogas até elogiou o que chamou de
"nova colônia" do estudante.
-
Obrigado! - ele respondeu sem graça.
De
noite, perto da volta pra casa, quando estava arrumando a mochila para sair de
aula, Natan então se deu conta da touca preta que havia colocado ali para
devolver ao seu dono. Foi isso que o fez, em cerca de meia hora, descer no
ponto próximo da favela e começar a subir devagar, olhando atento para os
lados, por qualquer sinal da presença daquele que o motivou a estar ali. Ele
não quis demorar muito, até porque não tinha outra desculpa a dar, caso não o
encontrasse. Ficou andando a esmo pelo caminho usual que fazia quando queria
comprar seu santo remédio, até chegou a cogitar a possibilidade de apertar um
para fazê-lo, mas aí sentiu que muito em breve o céu poderia ceder e aí optou
por ir para casa. Natan tomou banho, jantou, até fumou um antes de dormir, só
que isso foi muito difícil, porque, apesar de ressecada, a cama mantinha o
cheiro marginal do suor daquele vapor. Ou seria do forte vapor daquele
marginal? Até as narinas do universitário chegaram a queimar de tanta
excitação, como se o interior já não aguentasse aquela brasa líquida permanente
entranhada no colchão. O céu fechou e ameaçou desabar, mas nada disso
aconteceu, o que não impediu o mormaço de aflorar na cama do rapaz. O relógio
já indicava quase 2h da manhã quando ele finalmente pegou no sono, porém isso
só aconteceu quando Natan trocou o lençol e a colcha, além de mudar o lado do
colchão. Muito trabalho associado às mudanças de energia interna. Calor!
A sexta-feira não foi muito
diferente da quinta: excesso de calor, já que uma massa de ar quente decidiu
estacionar pela cidade, porém com pancadas de chuva a partir da tarde, como se
qualquer certeza fosse imediatamente evaporada junto com a sensação térmica,
que nem assim parava de subir, tal qual a umidade relativa do ar. Com a não
exceção do dia anterior, Natan passou por algumas situações repetitivas, como
ser perguntado sobre o delicioso perfume novo que estava usando por pessoas em
ambientes diferentes, tanto no trabalho quanto na faculdade. E da mesma maneira
como fez antes, insistiu em colocar a touca preta na mochila, para subir o
morro ao chegar e tentar entregá-la ao seu dono, que, por sinal, não era visto
há alguns dias. Desde quando sua presença passara a ser tão frequente ao ponto
de sua ausência já ser percebida como algo fora do comum? A modernidade pode
até ser líquida, mas alguns comportamentos continuam gasosos, livres e no
máximo de soltos e dispersos. Assim sendo, Natan se programou para subir o
morro quando chegasse em casa, só que as ameaças do céu noturno o mantiveram
incerto quanto a isso, então ele optou por desistir e rumar diretamente para o
próprio domicílio. Só que, horas após tudo isso acontecer, o universitário se
deu conta de que chuva nenhuma havia caído, pelo contrário: a música ao longe
até começou a tocar, indicando que, de fato, estava acontecendo um baile bem
alto em algum lugar por ali. Ele foi até à janela, olhou novamente para o céu e
tornou a repensar.
- É
melhor eu aproveitar e ir, qualquer coisa volto correndo. - concluiu.
De
bermuda, camisa de mangas longas para o caso de pegar chuva, chinelo e a touca
na mão, Natan pegou apenas um baseadinho, a chave, dinheiro e identidade, e
voltou ao morro onde já havia ido três vezes só na última semana. Nada de chuva
caindo, só o barulho do baile se tornando cada vez menor, porém ainda existente
próximo dali. A favela ficava no sentido oposto do barulho, então quando ele
chegou lá na parte acima da boca, na intenção de encontrar seu colega,
conseguiu ver a Gaiola se formando no outro lado do bairro, aí sim a música
ficou mais nítida e o funk alto se tornou convidativo, com um MC chamando todo
mundo para perto. Natan lembrou-se do que o marginal dissera sobre estar de
plantão e imaginou que nem tão cedo conseguiria falar com ele, já que o
trabalho de tomar conta da comunidade requeria atenção, principalmente em dias
de baile. Ele certamente poderia nem estar exatamente ali no morro, talvez
fazendo até a segurança de alguém ou então trabalhando em outros lados da
favela, já que era um dos vapores do comando. O universitário se sentiu um
pouco frustrado pelo ingênuo pensamento de que estava significando algo a mais
na perspectiva do cafuçu, pôs a mão dentro do bolso e pensou em acender o
baseadinho surpresa que trouxe sem nem pensar duas vezes, exclusivamente para
fumar com seu colega. Mas aquilo não aconteceria, afinal de contas.
Com o baile rolando no fundo, Natan,
agachado, levantou o corpo e se preparou para descer a favela. Eis que o céu e
suas mais diversas camadas hierárquicas de nuvens, indo dos príncipes aos reis,
decidiram trapacear com a percepção meteorológica do rapaz e o cumprimentaram
com uma pancada violenta de chuva torrencial. Não houve sinal nem da primeira
gota, porque a massa colossal de água apenas despencou e não parou mais,
obrigando Natan a correr mais do que qualquer coisa na direção do primeiro
abrigo que encontrou, que foi num barzinho fechado, com uma pequena cobertura
só para assim chamar. Os braços segurados pelas mãos, o físico tremendo tanto
pelo esforço repentino quanto pelo choque térmico, além do susto pelo barulho e
pela quantidade infindável de água descendo do céu. Pouco abaixo dos pés, a
correnteza recém formada já indicava o que viria pela frente, caso permanecesse
ali por muito tempo, o que o deixou descrente, já que se tratava de um morro,
portanto uma inclinação na qual a água deveria descer e nunca subir ao ponto de
preocupá-lo.
-
Que frio! - os dentes logo começaram a bater.
O
estudante sentiu qu6e começaria a tremer muito mais em breve e aí se colocou
entre o permanecer ali e tentar correr para outro canto, sendo que isso o
forçaria a se aventurar debaixo de mais água gelada, quando não estava
conseguindo enxergar meio palmo à frente do próprio nariz. Era muita chuva, do
tipo que se durasse uma hora paralisaria completamente a cidade do Rio de
Janeiro. Quando percebeu que o nível estava quase alcançando a calçada, Natan
não pensou muito e lançou o próprio corpo para a ruela lateral ao barzinho,
imaginando que caminhar por ali daria certo abrigo qualquer da tempestade. Pensou
que veria algum aglomerado de casas que pudesse protegê-lo, mas acabou quase
escorregando e descendo muito mais do que o necessário na rua, sendo
fisicamente incapaz de subir contra a quantidade absurda de água descendo.
Ensopado e começando a convulsionar de frio, o estudante apenas desceu ainda
mais na ruela e continuou procurando um abrigo, optando por respirar pela boca
para dispor de mais respiração e fôlego. Numa outra rua lateral, se deu conta
de uma espécie de tenda sendo sacudida pelo vento e correu para ficar entocado
por ali. Ao atravessar outra via curta, uma luz atravessou as gotas d'água e
quase prismaram seu corpo para o lado de dentro de um carro. Em palavras
realistas, Natan quase foi atropelado por um veículo acelerado, cujo volume de
funk conseguiu competir tanto com o baile ao fundo quanto com a chuva
torrencial descendo. As mãos pararam sobre o capô e ele tentou enxergar o que
havia acontecido, sentindo o coração disparar e a temperatura descer por
completa, chegando ao nível de causá-lo certo pânico. A luz interna acendeu e a
porta abriu, seguindo da diminuição do som e da buzina. O universitário
entendeu o sinal e foi para a lateral do carro, identificando o que mais queria
identificar. A porta abriu e ele entrou sem hesitar, mesmo encharcado pela
chuva. O ar condicionado ajudou a dar o toque final de choque térmico, sendo
que o aparelho fora imediatamente colocado no modo aquecedor, e aí a mão
segurando uma espécie de toalha parou do seu lado do rosto.
- Tá
fazendo o que de marola por essas banda, fiel? Qué morrê de frio, seu porra!?
Fumô crack, filho da puta!?
Todo
o excesso de xingamento foi para não acabar dando um pescotapa em Natan. O tom
de voz ditatorial e ao mesmo tempo apreensivo eram para adverti-lo e mostrar a
preocupação de alguém que o vira sofrer de frio anteriormente. O estudante
olhou para o lado e percebeu o interior do carro vazio, não fosse pela presença
do marginal favorito com uma mão no volante e outra segurando um baseado, como
sempre. A cara de invocado sendo honesta com a insatisfação sentida, o cigarro
aceso e contrastando com o exterior do carro, o bigodinho fininho bem aparado,
assim como o cabelo devidamente disfarçadinho e totalmente na régua, como bem
diria.
-
John John? - Natan quase não acreditou, apesar de acreditar e com muito gosto,
afinal de contas era o que mais queria, por isso estava ali.
Mas
agora a tempestade se armara e eles estavam juntos dentro de um veículo,
totalmente incapazes de dele saírem.
-
Claro, porra! Tá vendo!? - pigarreou antes de tragar fumaça. - Quem mais tu
esperou, fiel? Se enxuga direito, anda! Tua sorte é que guardo tudo nesse
carro!
Só
então o mais novo começou a se envolver na toalha jogada sobre si, usando a
peça para tentar absorver o máximo de umidade acumulada no corpo. O frio estava
congelante, mas o exaustor do carro e a preocupação do cafuçu poderiam tentar
aquecê-lo. John John tornou a ligar o motor e decidiu desligar o som quando se
deu conta de que o volume do baile havia aumentado drasticamente, ao ponto de
competir com a chuva externa para decidir quem dominaria a acústica da região
da Penha. Com a maestria de quem conhecia a favela como a palma da mão, o
marginal conduziu o carro até uma ruela da parte alta do morro e estacionou
exatamente onde sabia que a visão dava de frente para o cenário onde o baile
era organizado, ainda que do outro lado do bairro e que isso também não fosse
nitidamente explícito naquele momento de tempestade. Desligou o motor, encostou
o próprio banco para deitá-lo e aí voltou a acender o baseado. Tragou, olhou
para Natan e o viu ainda tremendo de frio, apesar de bem menos molhado e
envolto na toalha que ele deu.
-
Por que tu não ficô de casa, fiel? Qué ficá doente, seu puto?
O
cafuçu era daquele tipo de homem que não conseguia se preocupar sem parecer
grosseiro ou arrogante, uma vez que sua preocupação era tamanha, por qualquer
razão.
- Eu
vim te devolver isso.
Aí
tirou a mão do bolso e removeu um baseado todo molhado e a touca preta no mesmo
estado que o cigarro. John John viu aquilo e arregalou os olhos vermelhos,
ainda descontente com a resposta, apesar de entendê-la da melhor forma
possível.
- Tá
de sacanagem, né? Olha o teu estado, fiel! Tá bateno os dente!
O
ritmo atropelado e despreocupado com a oralidade era sua marca registrada na
hora de ser sincero. Antes de se mover dentro do carro, o cafuçu passou a mão
na cintura e tirou um revólver que estava preso nela, deixando Natan imediatamente
espantado com a atitude. Sem querer, ele riu e foi colocando a arma dentro do
porta-luvas.
- Não
se assusta.
O
estudante não queria ficar para trás, já que desejou encontrá-lo.
-
Não tô assustado.
O
parceiro de crime riu ainda mais à vontade, afastou um pouco as coxas e foi se
aconchegando no banco.
- Tô
ligado, tô vendo que não.
Bermuda
de algodão, camisa na mesma cor e um boné preto virado pra frente, com o mesmo
relógio e o cordão de sempre, atravessado no trapézio pouco protuberante. Os
braços magros e bem definidos dentro das mangas, entregando os ombros
desenhados e também escondidos, apenas fazendo volume na roupa. Depois de
guardar a arma, John John enfiou a mão enorme dentro do próprio bolso, mexeu
poucos segundos e tirou de lá de dentro dois papéis de seda e um pouco de erva
bem verde enrolada num pequeno saco transparente. O estudante observou aquilo
com atenção e aí se lembrou de que também havia trazido um baseado, que estava
mais do que molhado. O cafuçu viu o estado encharcado do cigarro todo torto e
deu um riso saliente, de quem na realidade não quis rir mais do que o
necessário, talvez para não constranger o outro.
- O
que? - perguntou o mais novo.
- Guarda
isso, fiel. Tá molhado, vai nem carburá.
Ele
ainda permaneceu alguns segundos com a mão estendida e o beck molhado todo
humilde sobre a palma tremendo. Àquela hora, o aquecedor do ar do carro já
havia feito bastante efeito no frio que assolava Natan até ali, então muito
provavelmente o tremelique fosse pelos mesmos motivos químicos de sempre: a
vaporização. Do lado de fora, a chuva torrencial desabando de todos os céus, ao
ponto deles não conseguirem enxergar meio palmo à frente do carro. Apesar de
tudo, o barulho do Baile da Gaiola só fez aumentar, duelando contra o da
tempestade. Só quem já foi sabe bem o fenômeno que é o evento. Enquanto isso,
John John foi enrolando um novo baseado, com toda a maestria de quem muito
estava acostumado com aquilo. Natan só o observou esticar a seda, dispersar a
erva verde no comprimento do papel fino e dobrá-lo sem cuidado para começar a
apertar. O cafuçu levantou os olhos sem intenção e o viu prestando atenção. As
duas visões se cruzaram e a centelha de calor foi passada através desse
sentido, de um corpo para o outro, tal qual afirma a lei da termodinâmica. Foi
quando o DJ do baile começou a tocar bem alto.
5. FERVOR
- "Deixo
você louca de vontade pra transar comigo, te olho com cara de safado, bandido!"
A
vibração da multidão ao longe deu pra ser escutada mesmo através do turbilhão
de água caindo das nuvens e suas hierarquias. Dentro do veículo, John John, sem
deixar por um segundo de observar o rosto atencioso de Natan, enrolou a seda na
maconha e preparou a ponta da língua para gomar e fechar de vez o cigarro.
- "É
que hoje à noite eu trouxe uma surpresa pra você, vamos lá pro carro que você
vai ver!"
Os
olhos vermelhos do cafuçu jamais o deixariam negar a forma tão verdadeira e
excêntrica dentro de um veículo tão pequeno para si. Seu físico era
simplesmente o mais bonito de todos já vistos por Natan, que nem era de ficar
observando homens tanto assim. A melanina, as veias, os encontros e desencontros
do corpo de Elton John deixaram o universitário, como sempre, quente, quase
baforando de tanto calor. A chuva fria e forte do lado de fora, a temperatura
acalentada e deleitosa ali dentro. O mais novo poderia jurar que o marginal
talvez não precisaria sequer de isqueiro para acender o beck que acabara de
enrolar. Ele colocou a mão no outro bolso, pegou o objeto para acender e assim
o fez, puxando forte o primeiro trago firme para sugar o máximo de fumaça
carregada de THC da maconha. Os olhares a postos, corpos parados e numa espécie
de sinergia, como se Natan tivesse aprendido a lidar um pouco com as estases
extremas de temperatura e choques térmicos. Não tinha como não aprender,
principalmente perto de John John.
- "Dentro
do carroo, hoje vai ter putariaaa! Dentro do carroo, hoje vai ter putariaaa!"
- o MC não parou um só instante de cantar.
À
frente deles, somente os brilhos rabiscados por conta da quantidade enorme de
água descendo sobre o vidro do veículo.
- "Senta,
senta, senta, senta, senta pra valer a pena! Senta, senta, senta, senta,
senta!"
O
jato de vapor puxado pelo marginal foi expelido pelas narinas, deixando os
olhos ainda mais vermelhos em seu relance natural, além de pequenos. As
minúsculas veias oculares saturadas e dilatadas ao mesmo tempo, extasiando a
visão e relaxando os globos.
- Tá
o verme, fiel!
Era
daquilo que John John gostava. Cheiro de maconha boa e de estar de frente para
a Gaiola, além de em boa companhia. Até esticou mais as pernas para o fundo do
carro e desceu o banco, para se colocar ligeiramente deitado. Afastou as coxas,
colocou uma das mãos por trás da cabeça e isso forçou o bíceps. Inclinou de
leve o corpo, na intenção de ficar num ângulo mais favorável para gastar a onda
conversando com seu fiel. O DJ mudou de música, porém a voz do mesmo MC seguiu
cantando.
- "Olha
quem brotou no baile, louquinha pra fuder! Os amigos tão aê, tu pode escolher!"
O
bandido passou o cigarro de maconha para o amigo e continuou liberando seus
vapores pelas narinas, parecendo uma espécie de chaminé, ainda misturada com um
farol em chamas, emitindo muita luz e calor, quase que uma estrela. O espectro
termológico de Natan pareceu recalibrado pela primeira vez depois de muito
tempo, se mantendo normal, apesar de ter vindo da chuva fria e de ter havido
uma mudança drástica de ambientes. Ele pegou o cigarro e tragou, sem conseguir
tirar os olhos do parceiro, que também se viu preso em seu olhar. Dois homens
que não conseguiam deixar de trocar a mesma visão um do outro, dentro do mesmo
carro e separados por poucos centímetros. Respiração quente. O silêncio interno
contrastou com a violência da tempestade externa, só que nada disso mais fez
diferença. Só uma coisa realmente importou: a temperatura. No teto, os vapores
resultantes dos passeios que as fumaças faziam em seus pulmões, bombeadas pelos
alvéolos até o resto dos corpos, e depois expelidas pelas narinas.
- De
quem é esse carro? - perguntou Natan.
O
cafuçu suspendeu um pouco o corpo e desafogou a cueca da região entre as coxas,
ficando ainda mais jogado no banco do motorista. Levantou as sobrancelhas e sorriu
torto.
- É
da tropa.
Esperou
uma reação assustada do parceiro, mas ele já estava entrando no efeito da onda,
então se manteve bem tranquilo. Para Natan, aquela calma era algo novo,
principalmente dadas as circunstâncias.
- "Quer
mais de um, então tá legal! Vai rolar bacanal! Gulosa, nem chama a amiga pra
entrar no pau!" - o DJ e o MC pareceram entender de contrastes,
considerando as músicas de 150 bpm sendo executadas.
Com
uma das mãos por trás da cabeça, a axila parcialmente peluda de John John ficou
exposta na direção do universitário. Aquela visão pareceu a mais injusta de
todas, num nível que deixou sua boca seca, como se a água do corpo estivesse
evaporando. Se fosse assim, era perigoso continuar perto demais do marginal,
primeiro porque iria secar de vez, e segundo porque nunca foi muito seguro
brincar perto do fogo, imagina com ele.
-
Qual foi? - o cafuçu não conseguiu não segurar a curiosidade.
Nesse
momento, o baseado voltou a si e ele tornou a pressurizar jatos e jatos de
vapor pulmões a dentro. Depois alvéolos, corrente sanguínea e neurônios. O efeito
do relaxamento destravou Elton John por completo, e aí a radiação não encontrou
barreiras para crescer e incendiar tudo ao redor, talvez por isso os olhos
estivessem no máximo de seu vermelho natural. Mais do que um farol em chamas,
aquele era um homem em erupção, no delicioso contraste de uma tempestade
tropical acontecendo logo acima. Quem prevalece, a lava ou a chuva torrencial?
A água ou o fogo? Com esse questionamento iniciei o primeiro parágrafo.
- "Se
tu quer foder, tu vai foder! Tô com a chave, de duas treta!"
-
Acho que eu tô.. - Natan começou a respondê-lo. - Ficando com febre de novo..
Ele
fraquejou, aquele era seu limite, apesar de ter resistido ao máximo de si. O
marginal riu e respondeu sem dar muita bola, talvez pela onda acontecendo. Uma
história sobre contrastes requer não apenas um sereio sendo incendiado por
dentro, como também um malandro lidando com suas próprias ondas internas. Tudo
isso é mero detalhe na termodinâmica que explica os equilíbrios.
-
Quem mandô tu pegá chuva, seu puto? Aí é foda!
- "Tu
entra na rua de trás ou então vira a esquerda.." - a música seguiu
explodindo nos paredões de caixas de som ao longe.
O
universitário sentiu a quentura maior do que o normal e insistiu em dizer.
- É
sério! Tô meio zonzo!
Foi
então que o cafuçu se lembrou de colocar a temperatura do ar condicionado de
volta ao normal, como se, de alguma maneira, isso pudesse ajudar, muito embora
Natan estivesse com febre. Existia algo em seu pensamento.
Em seguida, repentinamente, a mão de
traficante do morro veio certeira no pescoço do parceiro, que não imaginou
aquele movimento espontâneo e se viu completamente indefeso e desarmado. A
massa de outro corpo absolutamente quente pareceu como um ferro atravessando
sua própria carne. Carne de pescoço. Mas ainda assim carne, corpo físico sendo
tocado e medido por uma viga incandescente de calor e muito em chamas. O
próprio fogaréu descontrolador de Natan.
- Tá
nada, tá de boa. - fez como se tivesse apenas verificando a temperatura.
O MC
no baile, por sua vez, chegou ao refrão de um de seus funks mais conhecidos.
-
"Fode, fode com o vapor, mama os atividade! Mas se tu quer o DJ, aguarda
acabar o baile!"
A
ebulição começou e o contato da pele grossa de um com a fina do outro surtiu
como uma fagulha, um choque, uma corrente elétrica em curto circuito. Quase um
estalo que só fez com que se dedicassem ainda mais à sinceridade da ocasião e à
intimidade proporcionada pela mesma.
-
Por que você..
O
coração de Natan disparou quando a boca começou a fazer aquela pergunta sem a
autorização do cérebro. O ambiente saturado de vapor de maconha poderia
explicar essa falta de senso, a ousadia só estava sendo exposta e extravasada
pela alta pressão dos batimentos cardíacos.
- Eu..?
- o outro não quis perder a chance de descobrir, então tentou instigá-lo a não
parar por ali.
Talvez
a mente tivesse recapitulado a última vez que aquilo ocorreu, muito provavelmente
ali não seria diferente. Ou seria? Era um malandro. Ou sereio? O universitário
respirou fundo, concentrou o raciocínio em breves segundos e se permitiu ir
além.
-
Por que você.. não foi embora.. naquela noite? - quase não saiu.
Elton
John puxou mais um trago firme do baseado, desviou brevemente o olhar para a
lateral da janela do motorista e depois voltou a olhar para seu fiel parceiro.
Os olhos vermelhos fogo, o corpo querendo ser mudado a qualquer instante, mas
ali ele só precisava ser ele, sem medo de errar. O que entregou a química foi a
mão parada no pescoço de Natan, afinal de contas, medir temperatura não era tão
rápido para extremos. Ele ainda continuava tocando seu fiel, até que inverteu a
palma no pescoço dele e seguiu escorregando, alisando com certeza do que estava
fazendo.
- Tu
se lembra, Natan?
Quando
alguém que está acostumado a te chamar por algum apelido te chama pelo nome, é
muita pressão. Os dedos alisando a pele sedosa, como se estivessem no máximo do
controle para não transformá-la em massa da manobra. Não no sentido político e
sim no do manuseio.
-
Mais ou menos, eu acho que delirei bastante. - ele ergueu uma das sobrancelhas
ao responder, entregando a sinceridade toda à mesa. - Não tenho certeza do que
vi e do que sonhei.
Elton
riu.
- Tu
tem muito sonho, é?
O
mavambo ficou curioso quanto ao que pairava na mente de seu parceiro recente.
Curioso, porém não o suficiente para ir adiante.
-
Claro. Você não tem?
Pausa.
Um marginal tem muitos sonhos? O que ele deseja para o futuro? No trinco da
mente periférica de Elton, veio o baque da mesma pergunta feita dias atrás pelo
outro vapor, parceiro de crime.
-
"Tu não pensa em sair daqui?" - foi quase um eco.
As
lembranças então começaram a ser enumeradas livremente, num forte impulso
sentimental, só que bem disfarçado e bastante controlado.
- Tu
tava tremendo de frio, fiel. - o cafuçu passou uma mão no rosto e contornou o
bigodinho fino e loiro com os dedos indicador e polegar, circundando em seguida
a silhueta do queixo másculo. - Que nem agora.
O
estudante esperou um pouco e tentou entender, insistindo na afirmação que fez
minutos atrás para justificá-lo.
- É
porque eu tô com febre de novo, John John.
Foi
quando a mão do vapor subiu devagar pelo pescoço do universitário e mexeu de
leve na lateral de seu cabelo, atravessando os dedos pelas curtas mechas
crescendo. A voz veio baixa e terna. Não precisa falar alto quando se fala
certo, ele sabia bem disso. E mais certo do que os dois ali, ninguém.
-
Por isso que brotei, pô. - esperou e foi com tudo. - Pra te esquentar, fiel.
O
olhar baixo e mirado nos olhos do parceiro. A mesma mão que havia subido, agora
desceu devagar e ameaçou chegar à boca de Natan, que impediu John John de
fazê-lo, segurando seu antebraço com precisão. O contato pareceu com segurar
uma viga de ferro quente que é arremessada dentro da água fria, dando início a
um acelerado processo de efervescência, que libera, além de milhões de bolhas,
uma quantidade inimaginável de vapor. Calefação. Apesar de pará-lo, o estudante
não conseguiu evitar que o lábio superior fosse tocado pelo dedão abusado do
meliante favorito. O cafuçu desceu o mesmo dedo e brincou no lábio inferior de
Natan, tocando de leve sua gengiva, o dente e abrindo sua boca para que
provasse do gosto salgado e bruto, cru, que um macho de favela possui. Quando
os olhos perceberam o que, de fato, estava acontecendo, os cérebros chapados
retomaram o máximo da oxigenação e trabalharam, junto com o excesso de vapor de
THC no ambiente e nas mentes, para seguir o fluxo natural do envolvimento.
Sensação de umidade relativa do ar: 100%!
A mão de Natan soltou o antebraço do
cafuçu e foi direto para a parte de trás da cabeça dele, não somente dando
permissão, como também querendo ir ainda mais longe. John John puxou o rosto do
universitário com força e o inclinou de lado para acertar a boca no meio da
dele, colidindo seus lábios grossos de latino contra os finos do parceiro, em
total e linda violência, sede e necessidade. A volúpia do primeiro beijo foi
carregada de incredulidade, assim como a chuva do lado de fora do carro se
manteve torrencial e sem a menor impressão de cessar tão cedo. Eles também, já
que choveram trocando línguas, baba e muita saliva. O baile comendo lá do outro
lado, à frente, e o bicho pegando no veículo, literalmente. Em questão de
segundos de beijos e línguas se sobrepondo, a perfeição do equilíbrio
termodinâmico se deu, talvez por conta do tempo cozinhando até que chegassem
aquele ponto. Um malandro e um sereio, um vulcão e um oceano, o fogo e a água.
Contrastes em duelo para a tentativa físico química de se equilibrar. A mão de
Natan acarinhando o pé do cabelo descolorido do cafuçu, enquanto as de John
John não pararam um segundo de segurar o rosto do parceiro, tentando conduzi-lo
de acordo com a própria vontade de permanecer explorando a boca por dentro, com
a língua volumosa e apressada, além de muito quente e embrazada para beijar.
Pressa, posse, necessidade. O sereio se viu deliciosamente invadido, estava
finalmente queimando. Mas o malandro, por sua vez, gastava muito mais energia
ao tentar incendiar um oceano inteiro, ao invés de mera piscina d'água. Era
força versus resistência, sendo o encontro dos beijos um dos ápices do centro
em comum. Língua contra língua, mão contra cabeça, água contra fogo. Só no
primeiro minuto em que pararam de mexer mandíbulas e rostos de um lado para o
outro, o marginal, ainda com as mãos encaixadas na face de Natan, tocou o nariz
no dele e se pôs a observá-lo. Agora estavam em perspectivas muito mais próximas
do que nunca, frente à frente e se olhando.
-
Você..
-
Eu.. - foi a vez do marginal explicar alguma coisa. - .. brotei pra ver tu
dormir. Tem uns dias, fiel.
- O
que? - ele não acreditou. - Por que você fez isso?
-
Não sei, cria. Acho que tava preocupado de tu acordá com frio, tá ligado? Então
eu fiquei, e..
As
mãos do estudante passaram insistentemente pelo rosto quadrático do cafuçu,
pressionando seus lábios para crer em tudo que estava saindo da boca dele
naquele momento, o que não foi difícil.
-
Ficou e..
-
Fiquei e dormi do teu lado, só isso. Tu virô e ficô colado no meu peitoral, o
tempo todo sentindo meu cheiro. Dormiu com a cara enfiada no meu corpo, sendo
que eu suei a noite toda. Não quis ligar o ventilador e te matar de frio, né?
A
estase da troca de temperaturas mais uma vez se fez presente, trazendo à tona a
necessidade de ações em cima de palavras. As bocas se encontraram novamente,
abertas e em troca simultânea de línguas duelando uma por cima da outra. As
salivas, os fluídos, a necessidade, tudo sobre a tensão estava sendo
compartilhado no beijo, principalmente a dinâmica intensa dos movimentos das
cabeças e mandíbulas, de um lado para o outro, organizando a dança sexual do
prazer. Por conta dessa pressão-vapor, a mão rígida de Elton procurou o
antebraço sedoso de Natan, puxando-o com força para si, na intenção de
demonstrar o que estava se transformando em vontade infernal de consumação. O
fogo não é acostumado com limites, ele só quer queimar e se expandir em
labaredas. Num movimento repentino, o universitário se permitiu ser puxado e
pulou para cima do colo do marginal, ficando de frente para ele, com as pernas
para os lados de fora do banco, virado na horizontal. Sentiu sob a virilha o
poder de uma arma ainda não descoberta entre as pernas do cafuçu, e aí tremeu
por se lembrar de um fato tão único e ao mesmo tempo tão singelo que jamais
esperou que fosse sentir daquela maneira. As línguas se lamberam e as bocas
fecharam e abriram, virando no fluxo natural que o amor encontra para
acontecer, mesmo debaixo de chuva intensa no Rio de Janeiro. Com uma das mãos
livres, John John desabotoou a abertura da calça e deixou o volume da cueca
entrar no encontro entre corpos ocorrendo dentro do carro. O marginal não
conseguiu se manter deitado, teve que levantar o corpo e ficar sentado, quase
que na altura de Natan sobre si, aí removeu a própria blusa e também suspendeu
a do universitário, aproveitando a oportunidade para cair de boca no mamilo dele.
-
Sssss! - a reação foi espontânea, o jovem chegou a levantar a cabeça com o
tranco da primeira mordiscada dada por Elton em sua carne.
Até
a temperatura dos dentes estava quente, ao ponto de Natan ter que enroscar os
braços em volta da cabeça do amante chupando seu seio. O bigodinho fino também
roçou contra a pele sedosa, deixando arrepiada toda a inocência de um cara com
pouca experiência em homens. Ali estava parte do único e singelo do estudante,
porque tudo foi se desenrolando assim em cima, porém em baixo a coisa também
foi mexendo, rebolando, roçando e encaixando, mesmo com roupa. O colo do
marginal estava acalorado, num remelexo bem por cima do volume da ferramenta,
que não parou de pulsar com cada chupada, mordiscada e lambida nos mamilos
intumescidos do universitário. Sufocadas na calça surrada, as bolas do cafuçu
marcaram inchadas sob o tecido, sendo constantemente puxadas e envergadas pela
pica grossa posicionada logo acima, dando trancos e trancos para enrijecer a
uretra. Pareceu uma viga. Enquanto a boca brincou em um mamilo, os dedos
insistentes e grossos demais para os peitos revezaram no outro.
-
Hmmmmm, que delícia!! - nem o mais puro dos sereios conseguiu se controlar. -
Ssssss!
Estava
sendo comido com a boca pela frente e tinha as costas perfuradas por dedos
insistentes atrás. Os dentes atravessando a carne pareceram ferro incandescente
marcando a alma. O marginal não escondeu o lado possessivo de seu sexo,
posicionado todo no sentido de manter o mais novo sempre preso e escorado
contra si, como se quisesse imprensá-lo com seu desejo, tamanha vontade de
possuí-lo.
- Eu
nunca senti esse tipo de bagulho, fiel! Nunca peguei outro maluco, mas te
conhecê tá me deixando com muita vontade de entrar em você, tu tá ligado?! Tô
galudão pra te sentí por dentro, te deixá suando e quente com meu fogo!
Elton
disse isso enquanto esfregava insistentemente o rosto contra o peitoral do
amante, permitindo que sua pele arrastasse os lábios para cima e para baixo,
revelando as mandíbulas recheadas por presas possessivas e dominadoras, além de
deixar o corpo de Natan babado e ainda mais quente.
-
Você quer entrar em mim, John John? - ele teve que repetir, como que para
acreditar.
O
nariz enfiado na cabeça do cafuçu, arfando pesadamente seu cheiro, ao mesmo
tempo que o corpo tinha de lidar com o forte aperto do marginal atado a si pela
força bruta, entregue à intensidade da química termodinâmica dos corpos.
-
Não consigo pensá em ota parada, Natan. Tu tá sentindo isso?
A
pulsada do cacete ereto sob a virilha não teve como negar o desejo físico de
consumação presente na mente do traficante. A ferramenta usada para forjar
parte do fogaréu dentro do corpo de um cafuçu marginalmente malandreado. Todas
as envergaduras estavam trabalhando sob bastante pressão naquele momento,
talvez por isso muito vapor estivesse sendo expelido pela máquina física de
cada um deles, ao ponto de embaçar completamente os vidros do carro.
-
Tô!
-
Isso é quanto eu quero entrar em tu. Deixá uma parte de mim lá dentro, tá
ligado? - disse isso mordendo o lóbulo esquerdo do rapaz, arranhando seu
pescoço e nuca com os dentes afiados, além de deslizar o bigode fininho pelo
ombro e deixá-lo arrepiado.
A
brincadeira tava só começando, o baseado inclusive sequer havia apagado, aceso
no cinzeiro do porta-luvas e liberando mais fumaça para manter o ambiente
volátil, altamente misturável e com o clímax sexual que estava sendo
desenvolvido entre os amantes.
Mesmo sentado, o quadril desejoso do
mavambo estocou de leve contra a abertura das nádegas do estudante. Num impulso
mais marginal do que ele mesmo, as mãos não resistiram em segurar a bunda de
Natan como fariam em auges de luxúria com as piranhas do morro, por exemplo,
dando a entender que muito em breve alguns desses patamares poderiam ser
confundidos na prática, ou ao menos teriam essa oportunidade de coexistirem no
mesmo âmbito. À cada pulsada da vara impaciente, à cada tentativa de entrada do
quadril nervoso ou abertura proporcionada pelas mãos de segurar parafal de John
John, o rabo do universitário piscou mais intensamente e em boas durações,
incitando Natan a rebolar de leve no colo bem disposto. Quando o cafuçu não
queria que o jovem parasse, prendia os dedos em suas coxas como se quisesse
perfurá-lo com vigas quentes de puro fogo carnal e desejo. Vontade de moldá-lo
para si, entrar nele e modificá-lo por dentro com a sua própria ferramenta de
forja, com sua intenção, para que pudesse adaptá-lo para si, fazê-lo servi-lo.
-
Sssss, assim você vai acabar comigo, John John!
Natan
disse isso padecendo no paraíso, deixando que os dedos fincassem nas costas do
cafuçu e descessem arranhando por sua pele. Reagindo a isso, o puto ainda
arqueou como se fosse um felino dominado, como se quisesse dar mais espaço para
que o novinho pudesse se entregar para si. Uma tela sendo esculpida pelo fogo
calefador do vapor. As reboladas não parando de acontecer, Elton chupando e
mordiscando os mamilos do parceiro e o incitando a não parar, agarrado em si
feito um parasita, na maior delícia entre misturar palavras de universos
diferentes para justificar a paixão intensa. Parasita sugando Natan e tentando
estancá-lo de prazer na marra, literalmente.
-
Arhhhh, John John! Ssssss!
As
chupadas logo viraram mordiscadas, ao mesmo tempo que o mavambo usou uma das
mãos para ir se livrando das últimas peças de roupas que ainda impediam o
contato íntimo de acontecer de vez. Ao sentir isso, o universitário percebeu o
coração acelerar e se adequar ao ritmo batedor e quente do poder daquele macho
romântico malandreado e levemente marginalizado sobre si. As mãos dele,
inclusive, não pararam de tentar induzir o ritmo dos quadris do estudante, na
intenção de deixá-lo sempre bem disposto sobre o colo. Malícia.
- Tô
galudão em tu, Natan! Derdi quando te avistei, viado, que num consigo nem batê
punheta sem te imaginá na minha frente, tá ligado?! - estava ofegando feito uma
fera.
A
mão nervosa nem deu tempo para cumprimentos visuais, passou a rola dura por
baixo do elástico da cueca boxer que estava usando, liberou a peça e já a
encaixou novamente no entre nádegas bem úmido do parceiro, que fechou os olhos
e gemeu de tesão pelo contato grosso e mais quente do que o restante do corpo
do marginal.
-
Sssss, vai com calma, John John!
O
semblante de insegurança transpareceu mais do que o de entrega, e isso fez o
cafuçu frear um pouco e virar o queixo do outro em sua direção. Olhou no meio
da cara dele e sorriu. Natan tocou a mão rígida e bruta dele com a sua e os
dedos se entrelaçaram no maior dos encontros físicos dos quais já puderam
desfrutar juntos. Até o suor das partes entre os dedos se encontraram. Fluído
do corpo de um misturado ao do corpo de outro. E há quem duvide do amor homoafetivo,
assim como duvidam também do (meu) homoerotismo.
-
Eu.. - o tom de ternura permeou a frase e o resto do ambiente. - .. nunca fiz
isso antes, então..
Antes
de prosseguir, deu outro beijo demorado e com vontade no parceiro, mordendo os
lábios dele no final. Dois selinhos seguidos, um sorriso bobo e a permissão.
-
Então, por favor, vai com calma.
O
traficante sorriu e não parou de abraçá-lo um só minuto, chegando com tudo o
corpo pra frente, na intenção de se colocar ainda mais encaixado e por dentro
do outro. A física dos corpos teria mais um desafio para explicar como duas
entidades poderiam ocupar a mesma posição.
- Eu
vô ser o teu primêro. - o rosto de felicidade inusitada tomou conta de Elton. -
É por isso que tu é meu fiel.
Outro
beijo com vontade e bastante inflamado. A temperatura interna estava alta,
apesar do ar colocado no baixo. Os vidros do carro embaçados, os dois homens
ofegantes e compartilhando basicamente do mesmo oxigênio entre si. Sinergia
passional a mil. Se ainda existisse uma sensação de umidade relativa do ar, com
certeza já não seria mais relativa. 100% era mero detalhe entre eles. O beijo
terminou com o mavambo mordendo o lábio inferior do estudante com força, no
ponto de puxá-lo para si e emendar mais chupões. Devagar, ele foi escorregando
por baixo do banco e se posicionando cada vez mais com a cabeça da ferramenta
pincelando a entrada do corpo de Natan, que por sua vez não conseguiu parar de
piscar um só minuto naquele instrumento cumprido e de grossa espessura. Peludo,
também loiro, cabeçudo e veiudo, tudo com "udo" no final, pra
demonstrar a beleza da peça. Comportando dois bagos enormes e lotados de leite
de macho da rua.
- Relaxa
pro pai, vai? Relaxa que prometo que tu vai gostá do que eu vô fazê contigo. -
o volume baixo foi tudo que deu para ser ouvido ao pé da orelha, abafado e com
o vapor do hálito quente do malandro embrazado.
O
fervor interno disse a Natan que era melhor recuar, mas ele queria muito
satisfazer e ser satisfeito. Usar e ser usado. Se permitir, no máximo de todas
as hipóteses e acontecimentos a serem desenrolados ali dentro, bem no meio de
uma ruela da favela, debaixo de tempestade de começo de verão. O veículo
pareceu uma panela, meio que cozinhando o sexo explosivo entre marginal e
universitário.
- Tô
tentando, mas..
A
cabeça de Natan só teve tempo de se preocupar com uma única coisa,
principalmente conforme as pinceladas na porta do rabo foram ficando mais
molhadas e intrusivas, pecaminosamente agressivas e conduzidas por um cafuçu
querendo empestear outro corpo de fogo. Carbonização. A glande preta e grossa
do marginal já estava quase que forçando o elástico todo, de tão robusta e
pesada, além de faminta pelo abate sexual, pela consumação entre homens que
suam e ficam exaustos, caídos e mortos de tanto trepar. Cada rabiscada dessa
evocou uma piscadela da rabiola virgem, o nervoso explodindo com as rugas das
pregas sendo seduzidas pelo macho.
-
Acho que se você puser a camisinha.. - ele disse bem manhoso e baixo.
Nunca
havia transado, então idealizou a primeira vez de um jeito totalmente
diferente, ainda que estivesse maravilhoso e delicioso daquele modo. Quando foi
que imaginou tal desenrolo dos fatos, sentando na vara de um traficante que
estava basicamente interessado em si o quanto ele mesmo havia se interessado
antes?
- Entrá
no meu fiel assim seria pecado, meu cria! - disse novamente no pé do ouvido,
mordendo e chupando o lóbulo dele e liberando vapores quentes de hálito de
macho no cangote. - Seria desperdiçá!
Arrastou
o bigodinho, pincelou novamente a entrada e, com jeitinho, na malícia de
escorregar e forçar a cabeça na portinhola do rabo, usou da comunicação para
chegar onde mais queria.
- Tu
não confia em mim, Natan?
Perguntou
e botou mais pressão para entrar. O elástico anal relaxou um pouco só e aí a
tora conseguiu a passagem necessária para atravessar a cabeça. Esse empuxo
obrigou Natan a retrair as pregas instintivamente, sendo que agora o caceta
tava quase dentro, ou seja, ele piscou o rabo e isso só apertou ainda mais a
carne de suas entranhas ao redor da pica preta do cafuçu marginal.
-
SSSSSSS! - as unhas fizeram enorme desenho nas costas de Elton. - Hmmmmmm!
Em
chamas, o quadril do jovem rebolou sem querer, preenchendo e pressionando todas
as terminações nervosas do cu com a força da corrente sanguínea quente e
poderosa de um malandro dentro de si. Internamente, a piroca latejando tava
pulsando e descobrindo novos caminhos, novos lugares para chegar e se acomodar,
se acostumar com a pulsação também do ânus do outro reagindo à sua chegada e
posterior estadia. E quando começasse a entrar e sair, então? Dentro e fora,
dentro e fora?
-
Caralho, ssssss! Que delícia, fiel! - ele teve que acompanhar Natan e rebolar
junto, na intenção de ir penetrando e não deixar nada de fora por muito tempo.
Mas
ao fazê-lo, o cu foi fechando ainda mais, ao ponto de ser basicamente
impossível de continuar. Aqui, foi difícil para John John não ter pressa,
desacostumado com tanta pressão sobre o caralho faminto de trepada.
-
Hummm, que queimação! Sssss!
O
anel elástico estava mesmo em combustão, o cheiro de queimado já poderia ser
percebido. O marginal esticou as pernas, os pés, os dedos, e foi contorcendo
devagar o corpo para poder se meter no universitário. Não deixou um segundo de
segurar as coxas dele e forçar os dedos na carne das pernas, liderando e
guiando a posição e onde queria que elas estivessem. Uma vez todo inserido no
mais novo, ele se pôs alguns minutos imóvel e só brincou de pulsar, para
acostumá-lo com a nova situação e o preenchimento de si.
- Esse
sou eu querendo morá dento de tu, fiel! Pra tu me sentí e nunca mais se esquecê.
- mordeu-lhe o ombro. - Tá ligado? Tu confia em mim?
Ele
fez com que as palavras parecessem queimaduras no corpo e na mente do
estudante. Não somente o cu estava em brasas, a alma também, tamanho fogaréu
sendo desenvolvido em pleno veículo dentro do morro. Um calor que só, por falar
nisso, muito embora a chuva ainda castigasse do lado de fora. As bocas se
encontraram e as pulsadas foram se transformando em estocadas, até que Natan
foi finalmente soltando o corpo e se acostumando com os movimentos de se erguer
e descer sobre John John. O rabo em completo atrito com a inchada vara do
cafuçu, se descascando toda nas entranhas úmidas e quentes do mais novo.
Pareceu até lubrificação natural do tesão, mas poderia ser pelo fato de
pertencer à água, aos sereios, ao mesmo tempo que estava brincando com tanto
fogo de um malandro de primeira linha. Um mar de chamas envolvido em todo o
processo de ebulição.
- É
claro que confio, John John! SSSssss! - ele tentou jogar o corpo para trás, na
intenção de se pôr em posição mais confortável. - É que você é bem grande, não
sei se aguento!
Riram
pelo ego inflado na sacanagem.
- Se
tu confia em mim, é claro que aguenta. É a visão, tá gostosão!
O
outro continuou esperando para se acostumar e tentou contrair e relaxar o músculo
do esfíncter com cautela e cuidado, delirando em cada pulsada premeditada.
-
Não guenta, né, fiel? Olha pra mim e diz que não aguenta, seu puto! Diz que sô
teu maridão, vai?
A
frase rasgou o ambiente como a maior de todas as mais deliciosas ironias que
poderiam surgir ali. Mesmo diante de tamanho sentimento de envolvimento com o
marginal, ali estava, bem à frente dos olhos de Natan, o exemplo vívido, nítido
e bem inflamado do que era a natureza da paixão. O amor é um bem superior, no
qual você anseia pelo bem da pessoa, independente de ela estar com você ou não.
A paixão é possessiva, por isso que às vezes se torna perigosa e doentia, já
que é um fogo que pode se alastrar depressa demais e lamber todo o arredor numa
dança destrutiva de acasalamento e cópula entre machos.
-
Olha pro teu marido e diz que tu tá se amarrando em tomá pica, diz?
Os
tiros de parafal foram atravessando o corpo do jovem lentamente, numa
controvérsia entre a velocidade com a qual a arma fazia disparos. Aquele
armamento era diferente. O vai e vem não cessou em nenhum instante desse
diálogo dominador. John John não queria apenas a entrega física de outro homem
a si, ele queria também sentir que podia tudo e um pouco mais. Ele queria
constatar que se libertar era possível, ao ponto de ir muito mais além do que
já havia ido com alguma mina do morro, por exemplo. Ele DEMANDOU entrega de seu
parceiro, algo acima do que apenas tirar a roupa e trepar. Ele quis seu corpo,
sua alma, sua luxúria e todos os seus pecados no mesmo prato. Elton John não
quis comer só o rabo de Natan, ele EXIGIU basicamente a energia e a vitalidade
do jovens como preço para consumar o que mais queria consumar. Nenhuma
antropofagia é fácil, no fim das contas. Comer um semelhante requer muito..
FOGO? Para assar e tal.
-
Qual foi, fiel?
A
demora fez o marginal segurar o rosto do puto pelo queixo e o obrigar a olhar
para si. Não era só amor, era paixão. Você quer que a pessoa queira você, no
bem ou no mal. Pode ser doentia e explosiva, bem como disse anteriormente. E ele
não parou de mexer o quadril e transar enquanto exigia aquilo.
-
Não confia em mim?
Posse
e entrega se encontraram no meio da dominação e da submissão. A mão de segurar
fuzil passou do queixo para a lateral do rosto do novinho, aproveitando do
espaço para um dos dedos rígidos e salgados entrasse pela boca do safado.
-
Sssss, seu piranho! - Natan não pôde deixar de escapar.
Aquele
não era ele, aquelas ações não eram suas. De repente a paixão era mesmo aquilo,
o pulo da cerca do eu ao outro. Ou vice-versa, no fim das contas. O efeito
prático, que era muito importante, resultava no mesmo entre os dois envolvidos
no sexo em ebulição dentro do carro. Um baile ainda comendo solto lá na frente,
quilômetros distante, enquanto a chuva não parou de cair.
À vontade demais, Elton deu um
tapinha no rosto de Natan e mordeu a própria língua como se tivesse que manter
muito do próprio controle para não avançar. Rapidamente, veio à mente do
universitário a imagem do cafuçu armado sobre a moto, esperando para que subisse
na garupa e fosse com ele ao alto do morro.
-
"Não confia em mim, fiel?"
A
pergunta foi tanto no presente quanto no passado recente. O gosto salgado na
boca cresceu, e aí ele começou a chupar o dedo do mavambo sem pena, doido para
se entregar. Rebolou firme, empinou a bunda e pôs-se a cavalgar como nunca
havia feito.
-
Ssssss, piranho, é?
A
resposta foi ainda mais desafiadora, mais exigente do que as primeiras demandas
do marginal. A mão passou do rosto e de dentro da boca para o cabelo curto do
universitário. Os dedos se abriram, fizeram um gancho nas mechas e as torceram,
puxando para si e o obrigando a ficar mais arrebitado do que nunca.
-
Quem tu tá chamando de piranho, fiel? Perdeu a noção? Esqueceu que teu maridão
tá dento de tu, filho da puta?
Deu-lhe
um tapinha na cara e forçou o cóccix do jovem como se o corpo dele pertencesse
a si, todo seu, quase uma arma na mão de bandido.
-
Meu maridão? - ele respondeu abusado. - Que safado!
O
outro riu torto e, no fundo, bem no fundo, admirou aquele comportamento. Se era
tão entregue ao prazer, alguém para foder com ele também tinha que ter
determinada altura dentro do jogo.
- Tá
duvidano do teu marido, fiel?
A
pergunta veio acompanhada do brusco movimento feito pelo cafuçu, que, num só
giro, ajeitou Natan deitado de bruços sobre o branco do carona e caiu com tudo
por cima dele, na intenção de impedi-lo de reagir. Com certa marra de
dominador, tornou a colocar a piroca pulsante na rodela de pele do putinho,
rendendo suas mãos para trás e desfrutando do fato de poder fazer e acontecer
num carro tão apertado para o crescimento de ambos. No tranco, Natan jogou o
corpo para frente, mas foi logo puxado pelas ancas e pelo cabelo enrolado nas
mãos do favelado, que tratou de colar no lombo dele e prender o caralho no fundo
do cu apertado, todo tomado pela pulsação das veias do cacete encharcado de
tesão, além de muito inchado e latejando pela presença de tanta carne quente e
macia ao redor.
- Vô
fazê tu ficá ligado, Natan! Te mostrá quem é o teu maridão e fazê tu me amá,
seu viado!
Ser
puxado para trás e empurrado para frente ao mesmo tempo pareceu um dos melhores
pecados a cometer, segundo Natan. O auge da luxúria, do uso e do desuso do
próprio corpo, tudo em prol do prazer alheio e do próprio. A queimação da
penetração fazia parte do sentido, como se até a dor do alargamento pudesse
deixá-lo orgulhoso no que fazia. Não exclusivamente para o outro,
principalmente e também para si, já que estava em êxtase com toda pressão e
dominação sendo imposta. Queimando no fogo de um malandro muito habilidoso,
afinal de contas, armas de fogo eram objetos fáceis a um bandido.
-
Hmmm, arhhh!
De
quatro, o rabo travou mais do que antes, porém o diâmetro acostumado não
demorou a liberar passagem para o cacete impaciente do cafuçu. Numa posição
mais do que improvisada, ele só se preocupou em render o universitário e usá-lo
como gancho para investir ainda mais contra o rabo apertado, brincando de mexer
para os lados e engatar até às bolas, só para se certificar de que não deixaria
nada intocado por si mesmo. Desdobramentos do ego masculino.
-
Fala, Natan! Fala o nome do teu marido, fala! - acelerou o ritmo sem pena e
isso obrigou até mesmo o carro a começar a tremer.
A
chuva intensa do lado de fora, a putaria pesada acontecendo ali dentro. O
cabelo puxado, o rosto de lado e um mavambo brutamontes montado no lombo
arrebitado de um macho virgem, que nunca havia liberado a bunda até então. O
virgem e o malandro da pista, marginal da favela e próximo possível gerente na
hierarquia da boca de fumo. Água e fogo. Quem leva a melhor?
-
SSSSS, seu safado do caralho! Olha o que você tá fazendo comigo, ssssss!
O
suor escorrendo do corpo do latino começou a descer pelo físico claro do
universitário, de forma parecida com o que deve ter acontecido na noite em que
dormiram juntos, com Elton esquentando Natan. Os dois corações acelerados e
batendo fora de ritmo, uma vez que o equilíbrio térmico nunca esteve tão mais
próximo do que antes.
-
Fala, fiel! Tu me chamô de piranho, num chamô, caralho? SSSSSSS
O
gemido atrás do ouvido veio seguido do cheiro no cangote, que se desenrolou até
à mordida na pele, pra marcar a carne, e a fungada entre os cabelos, como se
fossem animais em sexo selvagem e puramente carnal. Cópula. Presa e predador.
Submisso e dominador.
-
Tem cu pra chamá teu marido de piranho, mas não tem pra falá o nome dele, é,
seu putinho do caralho? SSSSSSS! - a necessidade de dominá-lo até verbalmente
estava revelando que John John realmente se envolveu em todo o pudor. - Tu já
me viu comeno alguma mina pra me chamá de piranho, viado?
O
tapa veio forte no lombo, deixando marcado como se fosse seu gado, sua
propriedade, algo seu. Um corpo seu, uma bunda sua, por isso estava montado, se
esfregando, suando, mordendo, chupando, mordiscando, lambendo e venerando a
carne de outro homem. IMPORTANTE: não estava se deitando somente na intenção da
saciedade, ponto. Estava também se deitando para mostrar o que sabia, porque,
na real, quem quer se saciar come e sai, não se permite explodir como o
marginal estava fazendo.
-
Desse jeito, eu tenho certeza que todas as mulheres da favela querem transar
contigo, seu piranho! - Natan não perdoou na sinceridade, de quatro e levando
varada na bunda.
Entrando
e saindo parcialmente molhado, deixando ponte de suor no atrito, as terminações
nervosas do cu totalmente preenchidas por uma verga inchada, latejante e toda
estufada lá dentro, quase ao ponto de não passar mais. Emperrada, cabeça
absolutamente contornada por carne, sem descontinuar o delicioso e pecaminoso
atrito por um só segundo.
-
Caralho, eu vô te machucá, viado! - outro tapa em cheio na bunda, só que agora
a mão parou e apertou a nádega, fincando os dedos na carne exclusivamente para
sentir que era sua, ainda que naquele momento. - Vô te furá, vô acabá com a tua
marrinha de num falá meu nome! Te rasgá nessa porra, seu putinho!
Acelerou
o ritmo e, além do barulho do carro balançando pra cima e pra baixo com os
solavancos do cafuçu, o choque da colisão entre os corpos também pôde ser
sentido. Por falar em sentir, o universitário também reagiu à aceleração da
caralha abrindo o rabo ao meio e incendiando o cuzinho apertado, então dobrou
os dedos das mãos e dos pés de nervoso, mas se manteve ao máximo do relaxado
para continuar sendo currado e queimado de dentro para fora, praticamente
derretido.
-
Machuca, vai! Pode machucar, que eu deixo!! SSSSS
O
suor foi intenso, o fôlego quase faltou e o cabelo foi puxado para cima, sem o
quadril parar de levar no couro toda a pressão da cintura de um traficante
faminto e sedento. Com fome e com sede, no sentido cru das palavras. Se mal o
carro estava conseguindo lidar com os solavancos da vara emperrada no cu do
estudante, imagine o próprio estudante em si, todo aberto e exposto ao macho
bruto e marrento montado em si. O veículo gemendo e balançando, e olha que nem
tava tomando no cu que nem Natan.
-
Ah, pode machucá, fiel? SSSSSS, seu filho de uma puta! Isso tu sabe falá, né?
Aaarh-ssss, viado!!
A
paciência estava se esgotando como se fosse o líquido bombeado dentro do saco
do traficante. Os ovos gordões trabalhando a mil por hora, mexendo de um lado
para o outro com tanto tranco no lombo molhado de Natan, guerreiro e todo
tesudo em aguentar a pressão imposta. Nem o veículo. A quentura dentro de si
estava dilacerando, penetrando pelo corpo líquido e vaporizando só no contato
físico entre ambos, provocando secura interna que depois foi contrastada com a
umidade aflorando, minando feito fonte de fluídos efervescentes dentro de si,
numa catarse calorimétrica que nem a termodinâmica ousaria explicar.
-
SSSSSSS, safado! Geme meu nome, porra! Hmmmmm!
A
dança do quadril exigente não parou um segundo sequer, com o ativo rebolando e
empurrando, deslizando e desbravando, currando e comendo as entranhas do
passivo de dentro para fora. Entregue à comilança e fazendo se si mesmo
banquete, Natan permitiu que a dor o consumisse e se transformasse no mais puro
prazer, sendo engatado tal qual uma marcha, no sentido de aguentar estocadas em
alta velocidade, tudo dentro de um carro parado de aceleração, mas pulado e
saltado em movimentos sexuais internos.
-
SSSSS, você é meu maridão, Elton John! Hmmmm, piranho, é isso que cê quer
ouvir? Meu macho! SSSSS
Os
dedos dos pés contorcidos de tanto tesão espalhado pelo corpo.
- Putinho
do caralho, vô acabá é te emprenhando, desse jeito! SSSSS
A
agitação anal só evoluiu, o caralho torto pra esquerda e arrastando todo o
interior consigo. Grosso, cabeçudo e envergado para o lado por natureza, com
dois ovos enormes pendurados e também agitados com todo o movimento do prazer.
Quadril impaciente e perigoso, afinal de contas, era quadril de marginal,
traficante de morro. Malícia de sobra num vapor.
-
Pode emprenhar, John John! Me dá os seus filhos, dá? Você não é o meu marido, o
meu macho? Sssss! Devasso!
Ele
prendeu-se no corpo do parceiro e acelerou ao máximo que pôde, transformando o
encontro dos suores em lubrificante para a foda abrupta e inviolável.
-
Quer que eu faça contigo o que não fiz com as mina daqui, né, seu viado? Vô
gozá, porra! SSSSS Vô encher esse cuzinho de leite, se tu deixá!
-
Deixar? Sssss!
Mais
um tapa.
- É
isso que tu quer, né? Leite quente por cima do teu cabaço comido, fiel! Porra
da minha pica encheno esse cuzinho assado! SSSSSS
- É
isso que eu quero e é o que você também tá fazendo, seu piranho! - o passivo
insistiu em provocar, estando empinado como se pudesse quebrar a qualquer
momento. - Gosta? Hmmmm!
O
cacete grosso de Elton só fez engessar ainda mais contra as paredes quentes e
internas do corpo do Natan, que sentiu isso e tentou recuar, mas a insistência
do quadril marginal não quis dar espaço. Isso arrancou prazer do atrito de
ambos, deixando o universitário ainda mais tentado a ser completamente
penetrado e deflorado. Sem espaços. Ele chegou a botar a mão no vidro do carro
para se apoiar dos solavancos e trancos, o veículo absolutamente embaçado,
apesar da chuva externa, e quente, suando tanto quanto os dois. Essa mesma mão
acabou escorregando, e aí o rosto de Natan veio contra o próprio vidro,
arregaçado, exposto e totalmente aberto para o mundo, o universo dominador e
masculino de John John. Encontros catalisados no fervor do sexo. Forjados no
calor, na umidade proveniente da sublimação, todos esses elementos submetidos à
pressão da energia liberada por um único malandro presente.
-
Quero mermo! Por isso que vô gozá dentro de tu, Natan! Ssssss, vô gozá,
caralho! Hmmmmm!
Sem
afastar o quadril das nádegas do estudante, o traficante começou a rebolar e ir
profundo no rabo do passivo, sentindo o leite quente, grosso e pegajoso sair do
saco e atravessar a uretra espessa sob o comprimento do caralho, só para chegar
no fundo do ânus e ser continuamente socado até o talo do reto.
-
SSSSSS, porra! Hmmmmmm, caralho, John John!
Os
palavrões pareceram justos ao vocabulário do mais novo. Ele contraiu todo o
corpo, junto os dedos das mãos e dos pés a si e sentiu o interior sendo minado,
lotado, sitiado, encharcado de sêmen de outro homem, todo o fluído corpóreo e
físico de outro cara sendo diretamente depositado dentro de si, do próprio
ânus, no pelo e na pele. Só não foi no seco por se tratar de um passivo sereio,
adaptado à umidade suburbana. Mas é à malícia da favela? E à liquidez
impositiva do fogo malandro que percorria os becos e vielas da comunidade?
Natan conectou-se em um com o morro,
porque, em outras palavras, o fogo líquido, a sinestesia da facção agora estava
inundando a si mesmo, na maior de todas as contradições que uma história entre
água e fogo poderia suscitar. Uma maré incandescente de leite grosso tomou
conta do ânus, enquanto a cintura atrevida, maliciosa e marginal do cafuçu
continuou trabalhando, exaustivamente expelindo jatos de vapor, de porra galada
e também de testosterona e masculinidade para dentro do outro corpo. O suor
desceu pelas engrenagens mecânicas de macho, ele finalmente ameaçou desmontar
sobre o novinho, mas usou as pernas para se conter e não parar os movimentos. Ainda
estava gozando dentro, no fim das contas.
-
Sssss, aaarhh! Hmmmm! - o vapor se entregou aos gemidos, prendeu o parceiro com
as mãos em seus ombros úmidos e escorregadios, e deu as últimas enganchadas
dentro dele. - Fffffff!
O
saco todo empapado na portinhola do rabo inundado, quente e pingando em tesão
líquido. Talvez a porra seja o paradoxo da guerra da água com o fogo, porque é
justamente líquida e quente, então desfruta do melhor dos dois mundos. Fim. E
já que existe um líquido incandescente, e que o mesmo está conectado ao sêmen,
ao fluído físico masculino que representa a manifestação do prazer, existiria,
portanto, um fogo frio? Um.. gelo?
-
Ai, John! fffff - Natan desceu ao banco e a mão escorregou pelo vidro embaçado,
deixando a marca arrastada de quem deu o máximo de si para chegar aquele
momento. - Você..
O
vapor não quis sair de dentro dele ainda, então desceu junto e deitou sobre o
corpo ensopado do parceiro, permitindo o contato lubrificado e ainda que seu
próprio suor tomasse conta de tudo. Nada de novo sob o mesmo sol.
-
Eu? - quis saber o que viria adiante.
-
Você tem essa mania de não ir embora. - riu todo animado, sentiu o rabo
piscando e as pregas voltando a arder, já que tentaram retornar ao local e
foram impedidas pela presença da vara ainda dentro, apesar de menos envergada e
emperrada. - Da outra vez dormiu comigo e me deixou o dia todo com esse cheiro.
-
Agora tu vai ficá o dia todo com meu leite, fiel. - começou a rir de deboche. -
Papo reto, viado!
O
parceiro também riu e eles ficaram cara a cara, trocando beijos e conversando
amenidades importantes pós sexo. Do lado de fora, o barulho da chuva ainda
firme e forte, dividindo a acústica da região com o som pouco mais baixo do
baile acontecendo ao longe.
- Vô
te dar o papo..
Beijos
ternos entre os diálogos.
-
Fala.
- Tô
achando que não quero ir embora mermo, fiel.
Ele
pegou a mão do amante e beijou a parte de cima, olhando sincero nos olhos dele.
-
Bagulho é eu te botar firme, se ligô? Sem neurose. Deixá tu tranquilão do meu
lado, a gente suave num barraco, vários pezinho de maconha pra gente cuidá..
O
jovem não conseguiu segurar o riso e foi sua vez de debochar dos planos do
outro. Ele até achou bonita a história, mas jamais havia se imaginado dentro
dela. O conto de fadas margiclean bem diante dos olhos.
- Tu
tá rindo, é? Bota fé, porra!
- É
que eu acho engraçado, John John. Não imaginei escutar isso de você.
- Só
por que eu sô bandido?
A
marra do vocabulário foi proposital para forçar a imagem de homem invocado e
marginalizado, tão possessivo que ainda estava grudado ao corpo do parceiro,
totalmente abraçado e com as pernas entrelaçadas nas dele. Até os dedos dos pés
estavam se cruzando, compartilhando do mesmo suor e mesmíssimas impurezas. A
respiração deles só faltava ser uníssona para completar o sistema passional. Os
beijos foram revezados com as risadas proporcionadas pelo assunto.
-
Você é muito marrento mesmo!
- Sô
mermo, e tu se amarra, pô! - mordeu o lábio inferior de seu fiel. - Fala que
não pro teu maridão!?
Disse
isso apertando o tórax contra o dele.
-
Vai tê um momento que eu vô deixá tu descer mais esse morro, Natan. Tu ainda
não tá se ligando no papo reto que tô te dando. Vô te botá pra morá comigo,
viado.
A
mão subindo pelo pescoço e enroscando na base da carne dura e rígida do corpo
jovem, tensionado pela jugular na parte interna. O tendão exalando calor e
pressionado pelo domínio da mesma mão de segurar parafal e outras armas, além
da idolatria envolvida. Elton não estava dizendo, estava ditando, ou seja,
dando ordens, afirmações que, em sua convicção, deveriam ser seguidas. Era o
único jeito, era sua única solução. Os dedos fecharam próximos à garganta do
universitário e aí ele sentiu que estava perigosa e deliciosamente entregue. O
rabo ainda quente e pulsando de leve, o cabaço consumido pelo calibre grosso de
um cafuçu mandão e mais marrento do que aparentou. Mas nada mudou a percepção,
a sensação interna de secura provocada pela explosão de fogo causada de
propósito por um malandrão.
- Eu
morar contigo? - ele riu. - Na favela?
-
Ih, qual foi? Tá desmereceno o bagulho, fiel?
Os
beijos foram no pescoço, ao mesmo tempo que a língua começou a chupar o suor do
estudante, deixando uma marca inicialmente rosada e que foi ficando roxa. O
nervoso tomou conta do jovem, que ficou arrepiado, mas deixou se envolver à
química despressurizada do ambiente caloroso.
-
Não, não! Claro que não!
Ficaram
rindo que nem dois adolescentes que descobrem o sexo, entrelaçados e sem querer
sair um do outro. Dali em poucos minutos, John John reacendeu o baseado e se
ajeitou no banco, ainda sem roupas e todo suado. Virou o ar condicionado para
si, colocou um braço por trás da cabeça e tornou a encarar Natan enquanto
fumava, ambos se olhando em silêncio. Na penumbra da noite, chegou mais perto e
sugeriu passar a fumaça de sua boca para a do rapaz. Começou bem, mas logo se
envolveram num encontro bélico e fogoso de trocação de línguas em ebulição, com
direito a chupadas e mordidas de quase arrancar sangue dos lábios. O bigodinho
loiro e na régua deixou o universitário todo arrepiado novamente, com a onda do
THC dando a cereja do bolo no quesito sensações físicas e sexuais aumentadas.
- E
agora, John John?
Cada
um num banco, ambos deitados e se olhando, revezando o baseado passando.
- Já
te falei, viado. Não quero metê o pé.
O
sorriso foi quase o selo passional para confirmar a relação nascente e vívida.
Sem muitas pretensões além do ficarem juntos, os dois se viram empolgados com o
adiante da situação sexual e amorosa que explodiu entre eles, nutrida por
diversas moléculas químicas envolvidas nos mais diferentes processos.
Testosterona, dopamina, ocitocina, THC, além de muita umidade proveniente dos
vapores físicos do exercício, da manifestação e da realização do prazer. Como
resultado da experiência afetiva, Natan acabou se aconchegando no meio do
peitoral de Elton, como já estava se acostumando a fazer, e, mesmo com o vão do
meio do carro entre eles, deu um jeito de ser aninhado e pegar no sono. Não foi
difícil, dada a temperatura do corpo do amante, seu jeito de lhe acarinhar a
cabeça e também o delicioso cheiro do suor do esforço em consumi-lo. Qual
elemento faz isso, senão o fogo? Consumação, a palavra.
6.
GÁS
Por volta das 8h da manhã, quando
Natan abriu os olhos, se deparou com o teto de um carro com um pouco de fumaça
acumulada em cima. O cheiro deu a entender que alguém havia fumado maconha ali
recentemente, e a partir daí ele não precisou de recapitular tão lentamente
para se lembrar do que havia acontecido na noite anterior. Com as próprias
roupas aparentemente jogadas por cima do corpo, o estudante olhou para os
lados, mas não percebeu a presença de Elton John. Lembrou-se dele dizendo que
não queria ir embora e se sentiu um pouco triste ao não vê-lo por ali. Do lado
de fora, o sol tentava sobressair no meio das nuvens, sendo que o chão ainda
estava molhado pela chuva da madrugada. Até que, do nada, algo bateu contra a
janela do carro.
- TU
TÁ MALUCO!?
Natan
se assustou na hora, tomando consciência de que provavelmente ainda estava na
favela e que, portanto, o ideal a fazer era vestir as roupas, o que fez com
muita dificuldade, sem deixar de olhar um só instante para a janela do carona.
Ele identificou as costas de alguém no vidro e começou a prestar atenção nas
vozes do lado de fora.
- EU
SEI QUE ESSE VIADO TÁ AÍ DENTRO, SEU MERDA! EU VOU ACABAR COM ELE PELO QUE ELE
TÁ FAZENDO CONTIGO!
O
coração então disparou, porque o tom de ameaça foi inegavelmente associado a
quem ele menos esperou encontrar por ali. Devagar, Natan tentou se abaixar e
esconder a própria presença. Além de alguém estar entre a porta e Wallace, o
vidro embaçado dificultou qualquer visão nítida entre o lado interno e o
externo.
- TU
TÁ CHEIRADAÇO, WL! ACORDA, MENÓ! TÁ VIAJANDO!
Uma
terceira voz então surgiu no ambiente.
-
Cês tão noiado, seus puto? Abaixa essas porra agora, maluco!
Natan
deduziu que a coisa era mais séria do que pareceu e que todos ali muito
provavelmente estavam armados, menos ele. Acolheu-se ainda mais no espaço do
banco e, no silêncio que seguiu, escutou o próprio coração batendo acelerado.
Por trás da janela, se deu conta de que a pessoa parada com as costas na porta
era John John, que ainda por cima estava de braços abertos, como que numa
tentativa de impedir que Wallace entrasse.
-
ANDA, VIADO! SAI DA FRENTE QUE EU VOU MATAR ESSE DEMÔNIO AGORA, PORRA!
O
terceiro rapaz insistiu.
-
ABAIXA ESSA PORRA, WL! VAI, MALUCO! O PAI DA FACÇÃO VAI ACABÁ SABENO DESSA
PORRA, VIADO!
-
FODA-SE! ELE VAI É SABER DESSA VIADAGEM ACONTECENDO NA FAVELA DELE, ISSO SIM!
Todos
estavam gritando e muito exaltados.
- TU
TÁ FODIDO, JOHN JOHN! TU VAI SE FUDÊ POR CAUSA DE UM VIADINHO IMUNDO DESSES!
Quando
nada pareceu possível de mudar para pior ou melhor, um Natan tremendo de medo
escutou a voz de um novo elemento surgindo naquele cenário, totalmente à mercê
das probabilidades matemáticas em unir as pessoas certas no mesmo contexto. A
voz arrastada e ao mesmo tempo miada pareceu suspeita.
-
Que que cês.. tão fazendo?
Elton
fez silêncio, assim como o parceiro da boca, Wallace e Natan também. O rapaz
magrelo observou WL com a arma apontada na direção do próprio amigo e só então
se deu conta da gravidade da situação, levando as mãos à boca.
- Cê
bebeu, Wallace?
Num
movimento rápido, a figura atravessou o curto trajeto e ignorou todas as
possibilidades de morrer perfurado por uma arma de fogo. Fogo.
- Cê
não pode tá surtado de apontar uma arma pro Elton John, Wallace! Acorda!!
-
SAI DA FRENTE, WENDELL! TU NÃO TEM NOÇÃO DO QUE ESSE PUTO TÁ FAZENDO!
Wendell
olhou para o rosto sério de Natan e o segurou pelos antebraços.
- Do
que ele tá falando, Elton? Cê tá metido com o que, maluco?
-
Pergunta pro teu primo! Pede pra ele te passá a visão dessa nóia que ele tá
tendo, esse viciado! - gesticulou como se quisesse agredir Wallace, mas foi
segurado por um Wendell bastante preocupado.
-
Esse filho da puta tá traindo a facção, primo! Tá acobertando um maluco que não
é bem vindo aqui!
O
rapaz olhou outra vez para John John e fez o semblante de incrédulo, ainda que
tentando conceber cuidadosamente todas as informações chegando.
- Quem
cê tá acobertando, Elton? Do que o WL tá falando?
O
cafuçu engoliu a seco e desviou o olhar momentaneamente para baixo. De alguma
forma, talvez pela questão histórica, isso provou ao primo de Wallace que
alguma coisa muito importante ou diferente estava ocorrendo, considerando que
ele desconhecia pessoas tão responsáveis ou comprometidas com a facção quanto
Elton John.
-
Ele cismô que tô acobertando um maluco dentro desse carro, Wendell. - os olhos
arregalaram por um espontâneo lapso de segundo, muitos pingos sendo letras. -
Manda teu primo pará de história, po! Coé!?
O
marginal gesticulou até mais tranquilo, porém ainda mantendo o rosto de alguém
indignado com tanta desconfiança. Wendell pensou por alguns segundos, olhou
curioso para John John e tocou o próprio queixo com os dedos, como se
articulasse algum plano. Sem hesitar muito, virou e olhou para o primo
indignado e com as pupilas minúsculas, de tanto pó que cheirou.
- É
muito fácil, Wallace. - fez que sim com a cabeça, deu meia volta na frente do
carro e se posicionou do lado oposto onde eles estavam, na posição da porta
traseira que fica atrás da do motorista. - Eu vou entrar nessa porra desse
carro e vou ver se tem alguém aqui. Se não tiver, primo, a gente vai pra casa e
eu vou conversar com a minha tia. De verdade, cara, não aguento mais você!
-
Porra, Wendell, eu tenho certeza que tem um viado escondido nessa merda! Entra
nessa porra e vê, caralho!
O
volume continuou alto, mas não tanto quanto antes. Sem delongas, Wendell puxou
a maçaneta da porta traseira, abriu, entrou com a parte dianteira do corpo e
fechou. Em seguida, WL, que abaixou a arma, encarou o amigo de infância e o
outro parceiro que ainda estava ali de prontidão.
- Já
era pra tu, viado! Vai morrer tu e esse lixo que tu tá defendendo!
O
suor escorreu pela testa de Elton, que se deu conta da passagem do tempo e,
como em pouquíssimas vezes na vida, teve que se conter para não deixar as
pernas começarem a bater.
-
Não tenho o que escondê de tu, mermão.
Até
que a porta oposta à entrada por Wendell se abriu e ele saiu de lá com a mesma
expressão com a qual havia entrado. Os olhos fitaram o rosto sério do primo e
aí as sobrancelhas foram franzidas em um tom áspero.
-
Chega, Wallace! Pede desculpa pro Elton AGORA!
-
Q-Qu-
-
AGORA, PORRA! ANDA!
Wendell
bateu firme com o pé no chão e exigiu que seu parente se redimisse pela
situação passada. Estava envergonhado, completamente constrangido, ao ponto de
ficar com o rosto vermelho de tanta exposição.
-
Olha o que o pó tá fazendo contigo, Wallace! Eu sabia que entrar pra boca de
fumo ia te deixar noiado.
- Tá
maluco d-
-
MALUCO, WALLACE? Cê tem que me implorar pra eu não contar tudo pra minha tia,
seu marginal de Taubaté! Já mandei pedir desculpa pro Elton!
O
novinho deu dois passos a frente e apertou o ombro do primo com força, sem
qualquer medo de alguma possível reação da parte dele.
-
Pede desculpa pro Elton, porra!
WL
bateu com o ombro e saiu do controle de Wendell. Consternado e possuído pelo
efeito da droga, ele virou de costas e saiu andando, ainda possesso,
resmungando e amaldiçoando tudo ao redor.
-
Vamo ver o que o pai da facção vai dizê! - foram suas últimas palavras.
O
primo mais novo olhou para o rosto aflito de John John e alisou ternamente com
o ânimo de quem sabia o que fazer.
-
Fica tranquilo, Elton! Eu vou atrás dele, ele não vai conseguir nada com isso!
O
marginal acenou com a cabeça e mandou o outro parceiro sair dali, agindo como
se a situação tivesse sido dominada. Uma falsa ideia de tranquilidade abandonou
seu corpo, mas ele soube que não deveria demonstrar preocupação. Sem delongas,
Wendell mal se despediu e saiu apressado pelo mesmo beco por onde seu primo
mais velho entrou minutos atrás. Em seguida, John John voltou para o carro
tentando não aparentar nervosismo, muito embora a cabeça só pensasse em uma
coisa.
-
"Já era! Tô fodido!"
Ele
entrou pelo lugar do motorista e se deparou com Natan escondido na parte da
frente, no carona, mas muito atento a tudo que estava se passando lá fora.
-
Tu.. - ele começou a perguntar, meio curioso.
Mas
o universitário só ergueu o corpo de volta ao banco e encheu o amante com um
beijo completo, ciente de que poderia tê-lo perdido por muito pouco, justo após
a consumação de tanto envolvimento e trocas físico químicas de vapor. Uma noite
quente de amor que, em sua ideia, quase terminou mal naquele momento. John John
percebeu que o parceiro não tinha noção de que a realidade ainda era perigosa,
pôs as mãos em seus ombros de começou a explicar.
- Se
liga, fiel. Eu tenho que te tirá daqui o mais rápido possível. Não quero te
envolvê no meus caô, tá ligado?
- É
o Wallace, não é?
- É
o WL. Não sei qualé a dele, Natan. A melhó parada é tu ficá quietinho na tua
casa e não vim aqui tão cedo, tá miscutando?
O
estudante demorou algum tempo até fazer que sim com a cabeça, os olhos
começando a encher d'água.
-
Logo agora?
-
Agora, menó. Não tem caô, logo eu vô brotá na tua base, pode anotá.
Deu-lhe
um beijo terno e segurou o rosto com as mesmas mãos que deram tapas em seu
corpo na madrugada incandescente dentro do carro. Em seguida, girou a chave na
ignição do veículo e começou a executar o plano necessário à segurança do
amante.
- Tu
tem que me jurá um bagulho, Natan.
O
mais novo prestou muito atenção nas instruções sendo passadas.
-
Dois.
Fez
que sim com a cabeça.
- Tu
vai me esperá. - aí fez o um no dedo ao volante, contando o que queria que
fosse jurado. - E não vai subí esse morro por nada. Tá ligado, fiel? Se te
acontecê algum bagulho nunca vô me perdoá. Tu tem noção?
Olhou
nos olhos do amante e exigiu comprometimento com ambos os desejos. Era grande,
significativo, muito importante, tanto que ele deixou de prestar atenção no
trajeto e tornou a beijar o rapaz.
-
Sim, mas.. E se você demorar, John John?
-
Mas nada, viado. Tu só tem que me esperá, só isso. Vô voltá, já te dei o papo. Só
espera!
A
visão de Natan brilhou por conta do excesso de preocupação começando a
precipitar nos olhos atentos. Ele não quis parecer preocupado, mas disfarçar
apreensão do amante poderia ser tecnicamente impossível, principalmente dadas
as circunstâncias.
- Tu
confia em mim, fiel?
O
mais novo levantou a cabeça antes de responder baixinho.
-
Sim.
O
marginal dobrou algumas poucas ruas e passou a marcha do carro com toda a
cautela, como se tivesse certeza de que seus últimos movimentos precisariam de
ser bem pensados e calculados. Em questão de minutos, chegou à porta da casa do
universitário, desligou brevemente o motor e tornou a encará-lo.
-
Não quero mais metê o pé. - abriu um sorriso sincero. - Não quero ir embora,
então tu trata de esperá, que eu vô brotá!
A
última troca de olhares antes da despedida. Deram um beijo duradouro antes de
finalizar.
- Eu
com certeza vou te esperar, John John! Com certeza! Mas por que você não fica
aqui comigo? Por que você tem que voltar?
- Se
ficá aqui, eles vão me achá, aí tu vai rodá por causa de mim, fiel. Isso não
admito! - pigarreou. - EU VOLTO PRA TU, NATAN! Não sai daqui por nada!
Os
olhos quase não quiseram desfazer o contato visual, hesitando por longos
segundos, mesmo após o fim da duração do instante. Contrariado, Natan entendeu
e saiu do carro, se preparando para entrar contra a própria vontade. John John
subiu o vidro da janela do carona e arrancou com o veículo, ao mesmo passo em
que o outro abriu o portão dianteiro e caminhou pelo corredorzinho lateral do
terreno. Entrou pela casa com o coração a mil, sequer se lembrou de alimentar a
gatinha despertando para cumprimentá-lo. Nervoso, correu para o quarto, ajeitou
o bong da maneira mais rápida que pôde e se pôs a medicar o corpo. Não
conseguiria lidar com tamanha pressão na possibilidade de não mais ver seu
amante, justamente agora que o envolvimento aconteceu. Riscou o isqueiro,
acendeu a maconha e puxou tudo que pôde com os pulmões acostumados com a
cannabis.
-
Ssssss!
Jogou
as costas no colchão e, sem querer, a cabeça passou a repensar os últimos
momentos vividos ao lado de Elton John, sendo inevitavelmente atirado ao
instante de minutos atrás, quando a porta do carro abriu e Wendell, o primo de
Wallace, entrou pela parte de trás do veículo. Nas lembranças, Natan não se
moveu muito, apenas fez cara de assustado e custou a entender o que resultaria
dali.
-
"Não acredito nisso!" - foram as primeiras palavras do primo de WL. -
"Cê é.. viado?"
Natan,
muito nervoso, fez que sim com a cabeça.
-
"Cê fala, né? E não é daqui da comunidade, pelo visto.."
Ele
confirmou os dois fatos, enquanto do lado externo a tensão entre os homens
rolava.
-
"Nossa, cê deve tá muito nervoso." - esperou um pouco. - "Bom,
acho que só tenho uma pergunta pra fazer."
O
outro arregalou os olhos e se preparou para o que viria a seguir.
- "O
Elton.. te faz.. feliz?"
A
confirmação veio mais do que imediata, antes mesmo da pergunta ser finalizada.
- "Então
pra mim esse carro tá vazio. Felicidades, mona!" - Wendell usou as mãos
para gesticular, experiente no ato que o fez rir amigável para Natan.
O
estudante, por sua vez, ficou com uma
mistura de dúvida e felicidade indecifráveis, mas logo o primo de Wallace saiu
e deu prosseguimento à mentira de que o carro realmente estava vazio. Acobertou
John John e compactuou com uma falsa verdade, talvez por isso os atuais riscos
de não voltar a se encontrar com o amado. Justo agora. "O que aconteceria
caso WL conseguisse contar tudo que pretendia ao pai da facção? O que o pai da
facção poderia fazer contra John John?". Os momentos seguintes não seriam
passageiros e práticos como Natan imaginou, então todas as respostas das
perguntas acabaram demorando demais para surgir. Por hora, ele pegou no sono
chapado e só se preocupou em descansar o corpo, considerando que dormiu torto
dentro de um carro a noite toda. Dentro de si, ainda havia pedaços, diversas
partes liquefeitas de outra pessoa. Elton John. Isso para não falar do
pensamento a mil, agora sofrendo a analgesia do THC e se acalmando, ainda que
falsamente, traindo o perigo da própria percepção.
Por volta do começo da tarde, os
ouvidos de Natan foram as primeiras partes que despertaram no corpo. Não muito
longe de onde estava, protegido sob o teto de casa, o violento som de balas de
fogo sendo disparadas por canos de armas pôde ser captado. Um, dois, cinco.
Dez. Vinte. Cinquenta! Muito tiro, o universitário automaticamente se pôs de pé
e, muito grogue pelo despertar repentino, acabou se abaixando no chão do
quarto, como que em reação ao perigo eminente de ser surpreendido por balas
perdidas.
-
Que merda é essa?
A
mente foi drasticamente remetida à uma única pessoa possível: Elton John. A
vontade real de Natan foi de trocar de roupa e partir imediatamente para a
favela, mas foi nesse momento, ao pensar nessa possibilidade, que, sob o efeito
sonoro de muitos disparos diferentes sendo feitos ao longe, ele se recordou do
pedido feito pelo amante.
- "Trata
de esperá, que eu vô brotá!" - o sorriso e a voz vieram juntos à
consciência, os olhos se encheram d'água e aí o rapaz foi dominado pelo máximo
da incerteza.
E se
John John estivesse em perigo? E se todos aqueles disparos fossem contra o
corpo que Natan tanto admirava? E se morresse a pessoa responsável por
envolvê-lo? Os dias mais recentes e vívidos dos quais poderia se lembrar
estariam contados? Possivelmente mortos? Realidade bruta de engolir.
- O
QUE EU FAÇO!?
Ele
deu um soco no chão do quarto e sentiu os nós das mãos se dobrando e doendo. A
água outra vez precipitou dos olhos e o coração pareceu ser partido ao meio por
uma faca, tudo enquanto a mente ia reavivando boas lembranças de toques ao
longo do corpo, fluídos em movimento e a termodinâmica sexual acontecendo
dentro do carro na madrugada anterior. Foi bom e ruim ao mesmo tempo, porque,
vendo agora, o universitário teve a impressão de que o marginal havia se
despedido diversas vezes, como se estivesse ciente de que tudo aquilo
aconteceria e não pudesse dizer. Tudo depois de milhares de vapores terem saído
dos físicos em trabalho explícito. Prazer líquido em produção química e
biológica. As ciências da natureza, assim como os elementos, pariram intensos e
devotos amantes, no fim das contas.
- Eu
sou um merda mesmo! - Natan estava em desespero nítido, totalmente
descontrolado com o tiroteio rolando ao fundo. - Não consigo nem pensar!
Com
todas as forças que pôde, ele se concentrou e mentalizou muito o nome e a
imagem de Elton John, como se pudesse protegê-lo de longe, porém sabendo que
querer e poder eram coisas absolutamente distintas. Pensando rápido, Natan
ligou a internet do celular e começou a procurar notícias locais, passando
ligeiro os olhos por inúmeras linhas dos noticiários policiais da região. Em
poucos segundos, encontrou o cabeçalho do jornal da tarde indicando a operação
militar ocorrendo no morro próximo, o mesmo que serviu de palco para conhecer e
se apaixonar por John John.
-
"Já são mais de cinco mil estudantes sem aula na rede pública aqui da
região da Penha, Máximo!" - sobrevoando corajosa num helicóptero blindado,
a repórter falou e ao mesmo tempo tentou mostrar as imagens do morro por cima.
- "Até o momento, os militares já identificaram três mortos, mas as
identidades ainda estão sendo mantidas sob sigilo, porque, segundo apontam
investigações, os três seriam bandidos aqui da região!"
No
vídeo, três corpos passando em macas distintas, todos cobertos e imóveis, além
de impossíveis de serem reconhecidos, já que estavam fechados no plástico.
Mortos. Três mortos. O coração de Natan, se antes estava começando a se cortar,
acabou por ser despedaçado. Ele tornou a cair de joelhos no chão, os olhos não
hesitaram e a cachoeira desceu. Sublimação melancólica que nem a visão consegue
conter. Rios e vertentes de uma emoção poderosa, que só fez querê-lo Elton John
ainda mais. Da mesma forma como tudo começou do nada, ao nada Natan havia
retornado outra vez.
-
Isso..
Nem
falar direito ele conseguiu, tamanha tremedeira da boca.
-
Isso não pode ser real..
As
pernas tomaram impulso e, escutando o barulho do mesmo helicóptero passando por
cima de sua cabeça, o rapaz tentou se levantar para fazer o que julgou certo.
-
John John! - gritou.
O
peito incendiou e ele foi até à porta, ciente de que, mesmo com a advertência,
tinha que ir até onde o amado estava, nem que fosse para reconhecer seu corpo.
Foi aquilo que haviam jurado sobre não mais ir embora. E se o parceiro marginal
não queria mesmo ir, ele não iria nem se fosse buscado pela polícia. Um
pertencia ao outro agora. Posse. A mão girou na maçaneta, mas a sensação de ter
Elton gritando em sua cabeça foi maior.
-
"EU VOLTO PRA TU, NATAN! Não sai daqui por nada!"
O
corpo jovem travou, hesitou demais, e aí a conclusão foi ainda mais dolorosa do
que o começo das circunstâncias.
- Não
há nada que eu possa fazer, Elton. Me perdoa!
As
lágrimas desceram como se fosse uma criança, ao ponto de soluçar e se encolher
todo no chão da salinha. O vídeo do noticiário ainda sendo transmitido, os
barulhos de tiros misturados aos do helicóptero e todo o caos urbano sendo
propagado por dentro das emoções de um estudante de ensino superior recém
apaixonado por um marginal. Tremendo, Natan até pensou em fumar para tentar se
acalmar, mas nada daquilo resolveria a difícil situação pela qual estava passando.
Ele quis sair, quis morrer, quis dormir, quis correr, quis tudo, menos ficar
longe do amado. O dia todo foi martírio para o universitário.
Mais ou menos por volta do começo da
noite, poucas horas após o término do intenso tiroteio que deixou Natan aflito,
a chuva voltou a cair sobre a Penha. O silêncio se instaurou num bairro jogado
em luto e ao mesmo tempo apreensivo quanto à segurança dos próximos dias. Não
fosse a água caindo, a ausência de ruídos poderia deixar qualquer um louco, com
exceção de Natan. O jovem já estava além do frustrado, os olhos inegavelmente
abertos, porém cansados, ressecados e inchados de tanto chorar e não saber o
que fazer. Ele não conseguiu nem almoçar ou jantar, só ficou o tempo todo de um
lado para o outro, pensando, mazelando, até que se cansou e sentou, encostando
o corpo de volta à cama. A sensação de angústia extrema durou até o começo da
madrugada, que foi quando a dor de cabeça aumentou e aí os olhos pesaram ainda
mais de tanta abstinência e preocupação. Por causa do sofrimento do dia, mesmo
estando muito mais consternado do que necessariamente cansado, Natan sentiu que
muito em breve o sono chegaria, então não fez questão de resistir ou se
entregar, agiu apático e começou a cochilar. O primeiro estilhaço atravessou a
janela aberta e bateu num pequeno copo vazio sobre a estante, estilhaçando o
mesmo em milhões de pedaços. O barulho acordou o estudante e o deixou
assustado.
-
"Cacete, isso foi uma bala perdida!?"
Foi
inevitável pensar. Só que o segundo disparo veio, porém bateu na janela e
ricocheteou para o lado de fora. O rapaz levantou da cama e, curioso, caminhou
até o basculante, ciente de que uma bala perdida teria quebrado tudo e não sido
refletida pela grossura do vidro. Sem hesitar, porém mantendo o cuidado de se
esconder, ele escutou o barulho da chuva e foi se esgueirando pelo cantinho da
janela, na intenção de descobrir o que estava acontecendo. Assim que botou o
olho na fresta e olhou para fora, ele viu a figura escondida na sombra do poste
do lado oposto da rua, protegida da chuva caindo e com muitas pedras na mão. A
primeira coisa percebida foi a atadura no braço esquerdo, toda manchada de
vermelho. O segundo detalhe foi o sorriso torto e cansado no rosto levemente
marcado pela barbicha. Mesmo longe, a voz trouxe a certeza mais deliciosa de
todas.
- Demorei,
meu fiel?
Os
olhos nem tiveram tempo de deixar de chorar, só que o motivo agora foi outro.
Natan não quis saber de nada, só correu para sair de porta à fora e se jogar
nos colos do marginal que tanto amava e com quem aprendeu a se importar.
- NÃO!
- mentiu. - CLARO QUE NÃO DEMOROU, SEU MALUCO!
Mas
os olhos, sempre os olhos, eles jamais poderiam negar a sinceridade. Elton
percebeu o inchaço do parceiro e a primeira coisa que fez foi abraçá-lo contra
sei, bem forte. Mesmo com o braço ferido, ele o passou pelos ombros de Natan e
deu um beijo em sua testa.
- Te
preocupei, né, Natan?
Abraçado
ao tronco do cafuçu, Natan fez que sim com a cabeça enfiada no peitoral dele,
arfando pesado e se entregando ao choro mais verdadeiro de todos.
-
Relaxa que agora tô aqui. - passou a mão pesada no cabelo do amante. - Falei
que ia brotá, num falei?
- Eu
tava tão preocupado, pensei que você tinha..
A
palavra nem quis sair da boca, de tão pesada que era, e acabou sendo impedida
pelo beijo grosso da boca de Elton John. O estalo das línguas serviu para selar
o que ambos haviam estabelecido: a volta. Sorriso sincero.
- Sô
bandido, porra! Sisqueceu?
Abraçados,
eles caminharam devagar para dentro da casa, debaixo da fina chuva, um preso ao
outro. Talvez nunca mais se separassem. Natan fechou a porta como se fosse a
pessoa mais feliz do mundo, completamente vislumbrado com a imagem do cafuçu em
sua casa, agora de mochila nas costas e um braço em ataduras. Ficou parado
observando o latino de pé, as roupas sujas e úmidas, além de um pouco rasgadas.
Os pelos do corpo ficando com a raiz escura, dado o tempo desde que foram
descoloridos pela última vez. O bigodinho fininho já estava engrossando, assim
como as costeletas descendo pelas laterais brutas do rosto másculo. O que mais
combinou com o semblante de invocado foi o sorriso. Torto, como sempre.
-
Será que tu vai tê espaço pra mim aqui, fiel?
A
pergunta em tom de humildade deixou Natan explodindo por dentro.
- Eu
vim pra ficá, Natan. Vim ficá cutigo no bagui.
O
riso do marginal não foi malicioso, e sim sincero, quase um garotão nu e cru
diante do parceiro. Entregue em sua essência e não mais protelando qualquer
tipo de responsabilidade emocional. Ele disse que voltaria e voltou, então
agora ali estava.
- Fui
só pegá um gás antes, sabe coé?
Natan
sorriu o sorriso mais largo que possuía, ao mesmo tempo em que o choro de
felicidade tornou a descer no rosto benevolente. De uma orelha à outra, quase,
de tão realizado que se sentiu. Diante dos olhos, seu amor vivo e respirando,
apesar do braço machucado, e dentro de sua casa, de sua vida, preparado para
mergulhar em sua rotina. Elton John deixou a mochila escorregar sobre a cama,
sentou no colchão e bateu devagar na própria perna, como se quisesse convidar o
parceiro a se unir.
-
Vem cá, vem, meu fiel? Tô precisando muito de tu!
O
universitário nem pensou, só fez o que queria fazer desde o começo do dia.
Caminhou devagar, sentou na coxa do marginal e o abraçou com as mãos ao redor
do pescoço. Se olharam e se beijaram ternamente em seguida, trocando as línguas
e a intimidade do corpo, da entrega física e emocional. Quentes, corpos tendem
a produzir vapores.
- E
esse braço? - o estudante teve que perguntar.
-
Missão pra tu. Tu que vai cuidá de mim agora, tá ligado, né?
Sorriso,
beijo, carinho, cheiro e afago. O espaço era todo deles, não somente o tempo.
Elton alisou o rosto do amante com o verso da mão. O malandro do mundo estava
mesmo apaixonado, isso era inegável. Reciprocidade é o que ajuda a manter o
ciclo. Um ciclo hidrológico, no fim das contas, porque o aumento da temperatura
é o que transforma o estado físico da água.
- É
claro que eu tô ligado, Elton!
A
mão desceu pelas costas do mais novo e se espalmou na bunda. Eles deram o
sorriso safado por reconhecer aquele domínio. Marginal, por sinal.
- E
essa mochila pesada?
Elton
sorriu entregue ao abraço do amado. Beijou-lhe ternamente os lábios, alisou
outra vez o rosto e respondeu olhando nos olhos.
- Tá
tudo que é nosso nessa mochila, fiel.
Aí
ficou ligeiramente torto, só por detalhe, afinal de contas, era parte do que o
constituía.
-
Trouxe até as semente de maconha pra gente plantá junto. E quero que tu já
mande o papo de qualquer bagulho pra eu fazê pra te ajudá em casa, se ligô? Vô
ficá parado não, fiel.
Olhos
nos olhos, sincronia termodinâmica. Equilíbrio de temperaturas. Fervor.
-
Você não era bandido, John John? - o mais novo debochou, ainda assim com amor.
- Eu
era, pô. Só vapô, fiel. Só vapô.
Os
dois homens se beijaram e trocaram mais daquela essência compartilhada. O fogo
e a água decretaram um acordo, ou talvez tenham se colocado dentro de um.
Conseguiram coexistir plenos e em ressonância, dentro da mesma existência. O
beijo deles era o argumento científico para isso, porque era onde os finos
lábios de Natan sentiam a pressão e a radiação proveniente da carne de Elton.
Sereio e malandro, água e fogo. Éter. Um farol marginal iluminando e aquecendo
uma nascente pacata, fresca e tranquila. Um homenzarrão embrazado, que chega
cansado à beira do rio e enche as mãos calejadas de água cristalina e corrente
para poder saciar a própria sede. Os olhos se cruzaram uma última vez e ambos
sorriram só pelo olhar. Difícil dizer qual emoção dominava a situação da água e
do fogo por si só, mas uma coisa era importante afirmar: pelo menos no caminho
deles, estava tudo bem agora. Nunca foi tão mais fácil se jogar na cama, cair
por cima um do outro e viver.
__________
Obs: VAPOR ainda não foi completamente revisado, principalmente o último capítulo. Hoje é meu aniversário, então é um presente de mim pra vocês.
ATIVIDADE (2019)
Eu matei um contista, portanto ele está morto. A partir de agora, chega de contos. Histórias longas como essas, divididas em capítulos e em formato de pequenos livros.