_VEADO
NA CABEÇA_
Antes
mesmo de saírem do bequinho, a conversa na roda de samba continuou alta, com o
tal Cléber terminando de se defender da zoação de um dos colegas.
-
".. que nem o Marlon, pelo menos!"
No
momento exato em que Caio entrou em contato visual com todos aqueles machos
distribuídos e desordenados por ali, um negro de cabelos descoloridos,
aparência de novo, se levantou da mesa e fez o semblante de irritado.
-
Qual foi, menó? Agora até tu vai ficar de papo torto com essas fofoquinha pra
cima de mim?
Os
ombros imponentes ficaram armados como se o embate físico fosse explodir a
qualquer momento, ao ponto de até Helder demonstrar que deveria se preocupar.
Perto do rapaz visivelmente irritado, dois colegas tentaram acalmá-lo, mas sem
chegar muito perto.
-
Calma, mano, tá todo mundo se zoando! Sem neura, sem neura!
-
Sem neura é o caralho, ô filho da puta! Não é de tu que tão fofocando, seu
merda! - apontou o dedo na cara de um deles e quase cuspiu em repulsa.
O
tom arrastado indicou que estava bêbado, então os amigos nem se preocuparam e
só se empenharam em pacificá-lo sem alarde, como se quisessem impedir um
estouro desnecessário.
-
Geral tá sendo zoado, Marlon! Fica sussa, bro!
Ele
só se desfez de tudo que o estava impedindo de sair dali, pegou um enorme
carretel de linha e virou o boné para trás. Sem blusa, o tórax rígido ficou
quase que definido, aparentando o porte físico de alguém próximo dos 18, 19
anos. Antes de sair de vez, o sujeito irritado virou na direção de Cléber e
apontou no rosto dele.
- E
tu..
Suspirou
brevemente, inflamado em si.
-
Não tire os olhos de mim!
A
frase atravessou o ambiente como se já pudesse ter sido ouvida anteriormente,
numa espécie de eco que deixou todo mundo pensativo com o desfecho. Se eram
zoações, não deveria terminar daquela maneira, com uma suposta ameaça. O que um
molecote revoltado poderia aprontar?
__________
_VINÍCIUS
"CAVALIN" CAVALINE_
Do lado de fora, Ruan observou um
homem sentado numa das cadeiras de corte de cabelo, a cara mais invocada
impossível, o corpo negro e literalmente jogado no assento, como se não
quisesse estar ali. O que mais chamou atenção, além do rosto de poucos amigos
do rapaz, foi o fato de, à primeira vista, todos os pelos de seu corpo serem
descoloridos, contrastando fortemente com a pele escura. Antes de ser
percebido, o militar conseguiu escutar um pouco da conversa que o indivíduo
estava tendo com o barbeiro, que por sua vez estava de pé atrás dele, uma
tesoura numa mão e a máquina de cortar cabelos na outra.
- Tu
sabe como a rapaziada se amarra em gastar, não sabe? - o barbudo, de pé,
prestando bastante atenção no manuseio da máquina na cabeça do moleque. - Eles
tavam fazendo piada com tu quase ter sido pai, se ligô? Depois veio esse papo
de que tu tava andando com viado aí, filhote!
O
invocado então bateu com os pés no chão, franziu as sobrancelhas, e toda a
agitação obrigou o barbeiro a recuar as mãos, na intenção de não feri-lo
acidentalmente. O suor escorrendo pela testa deixou Ruan ciente de que não
chegou em boa hora, já que a tensão amistosa entre eles era visível.
-
Esses merda tão pensando o que? A porra da vida é deles, ô Cavalin? Manda eles
se fuderem, esse bando de arrombado! Tudo filho da puta, fazem vários bagulho
por aí e ninguém fala porra nenhuma!
Uma
das mãos estava em formato de arma e apontando para cima, demonstrando o quão
indignado o cafuçu estava. A pele negra contrastou com o bigodinho fino que o
barbeiro estava tentando ajeitar a todo custo.
-
Mas tu não pode ficar puto assim, Marlon. Tu sabe bem que a galera gasta mesmo,
porra!
- Eu
fico pistola com essas fofoquinha, na moral! Não perco tempo falando de ninguém
nesse fim de mundo, filho da puta não tira meu nome da boca um segundo. Puta
que pariu!
-
Nisso tu tem razão, Subúrbia é só fofoca mesmo. Por isso que não adianta tu
ficar bolado, maluco.
Ruan
percebeu que Cavalin era novo, aparentando poucos anos a mais, talvez 23 no
máximo. O cabelo era curto, na máquina um, mas o cara era bem barbudo, estilo
sheik, numa atraente mistura entre o latino e o negro. Os antebraços tinham
algumas tatuagens, todos os seus pelos eram bem escuros e ele estava usando
apenas um short mole, que balançava livre conforme se movia. Foi para ali que o
militar não conseguiu parar de olhar, por isso se manteve estático, vendo e
ouvindo toda a conversa, até ser mirado pelo par de olhos taxativos de Marlon,
refletidos pelo enorme espelho diante do balcão do salão.
- E
tu, vai ficar mais quanto tempo parado aí? - sentado sem blusa na cadeira de
corte, ele perguntou e fez o semblante de poucos amigos. - Tá de fofoquinha
também nessa porra?
Até
Cavalin virou o corpo na direção oposta, dando de cara com Ruan na entrada da
barbearia. Uma vez percebido, o militar soube que não havia como voltar atrás,
então andou um pouco mais à frente e começou a se explicar.
- Opa,
boa noite! - foi educado. - É que eu sirvo num batalhão aqui perto e esqueci de
fazer a barba pra amanhã. Passei e vi a luz acesa, tive que entrar.
Marlon
entendeu que aquilo não competia a si, então voltou a se olhar no espelho e
alisou o bigodinho fino e descolorido, dando um risinho safado ao admirar o
resultado.
-
Representô, viado! Que isso!
Levantou
num só pulo da cadeira, bateu no ombro do barbeiro e saiu olhando firme para a
cara de Ruan. Ao passar no balcão da entrada, pegou um copo cheio de bebida,
que muito provavelmente deixou ali ao entrar. Estava descalço, indicando que:
ou não morava longe, ou adorava manifestar o jeito suburbano e simples de andar
igual molecote, livre e largado. Ou então a mistura dos dois.
- Te
vejo no fut, Cavalin viado!
-
Tamo junto, filhote!
- Eu sinceramente não sei o que dizer.
A voz normalmente séria de um dos rapazes sobressaiu às
risadas dos outros. Sentado mais do lado externo dos bancos da praça, somente
um outro amigo tinha admiração e simpatia a ponto de sentar-se à mesma mesa que
ele.
- Por que vocês gostam de viver nessa palhaçada?
Com cara de invocado, o cafuçu menos querido da roda
cruzou as pernas por sobre uma das cadeiras, ficando bem à vontade. Sem blusa,
jogou os braços por trás do cabelo totalmente descolorido, exibindo a silhueta
das axilas também brancas. Mirou o olhar odioso diretamente para Cléber, o
maridão que Patrícia acreditava ser exemplar, e o corpo todo negro pareceu
controlado demais aos olhos dos colegas, que já sabiam o quão explosivo e
irritado o mavambo era.
- Do que tu tá falando, seu moleque? - Cléber nunca
conseguia deixar barato, principalmente depois de tomar umas. - É sempre tu que
abre a boca pra soltar uma merda, né? Incrível!
O círculo de amigos acompanhou com os olhares dirigidos
de um lado para o outro da roda, esperando que o pior fosse acontecer logo.
Briga depois de churrascada é a cara do subúrbio, vamos combinar.
- Só queria entender como vocês tem culhão pra se achar
tanto, sem neurose.
O maridão pensou um pouco, arqueou uma das sobrancelhas e
disse.
- Tu queria que a gente fosse como, Marlon? Fala aí!
Sem delongas, o novinho disparou na fuça.
- Eu não quero nada, meu parceiro! - riu e balançou a
cabeça negativamente. - Único bagulho que eu não tinha noção é que a pessoa
fica com amnésia depois que vira adulta, se ligô? Mó doideira!
Os ânimos ao redor começaram a se exaltar, mas era mais
um encontro normal de amigos. Marlon era sempre o que trazia a discórdia
consigo, então estava sempre envolvo em alguma fofoquinha, principalmente
dentro do pelotão.
- Amnésia de que, fedelho!?
- Vocês fingem que nunca fizeram uma porrada de putaria
na vida de vocês, aí ficam apontando o dedo na cara dos outros. - falou sério.
- A maioria aqui ainda faz uma porrada de bagulho, tá ligado? Então não sei pra
que isso.
O maridão cruzou os braços na altura do peitoral e a veia
marcou na testa.
- Tu queria que a gente fosse que nem tu, seu puto? Que
não finge nada, que fuma maconha o dia todo, solta pipa e é um vagabundo?
Todo mundo só olhou imediatamente para Marlon, alguns já
se preparando para levantar e segurá-lo assim que necessário. Só que, mais
tranquilo do que nunca, o cafuçu de cabelo descolorido se manteve quieto, até
surpreendido pela reação rápida dos colegas de futebol. Ninguém acreditou que o
mais nervoso e irritado de todos apenas cruzou as pernas e sorriu.
- Eu já tô no grau dessas fofoquinha, rapaziada. Senta
nessa porra! - fez questão de acalmá-los. Ou se transformou em outra pessoa, ou
tinha algum plano preparado nas mangas, prestes a executar. - O amigo de vocês
não tá dando lição de moral em mim, não.
Mas o quarentão já fez questão de corrigi-lo.
- Tô sim! É tudo pra você, seu pirralho. Tá pensando que
a gente tem a tua idade, a tua vida? - o tom nervoso não abaixou um só minuto.
Talvez fosse a carência pela distância de Patrícia. - Todo mundo nessa roda
aqui é adulto, trabalha e se sustenta. Ninguém precisa contar o que fica
fazendo entre quatro paredes, tá entendendo? Ninguém aqui brinca de boneco, de
boneca não, seu fedelho!
Os dentes do molecote cerraram por um breve momento ao
escutar aquela palavra específica, dita pelo coroa. Na mente, quase sempre
irritada, a imagem escorregadia de uma tatuagem de coração feita numa cintura
morena e sinuosa, com algo escrito. O sangue ferveu rápido, revelando que nem
tudo era controle para Marlon.
- Tu sabe o que eu vim fazer em Subúrbia, seu velhote? Tu
conhece a minha vida pra falar de mim assim?
O amigo do lado colocou a mão sobre o braço do odioso
cafuçu, na intenção de acalmá-lo.
- Pouco me interessa, seu vadio!
A reação espontânea que deixou todo mundo surpreso foi a
sequência de gargalhadas dada por Marlon. Os colegas chegaram a ficar
desconfortáveis. O quarentão, então, só faltou levantar para amassá-lo com as
próprias mãos.
- Tu tem problema, seu merdinha? Tá rindo do que?
- Foi mal, acho engraçado ver tu falando tão cheio de si.
- ele cerrou os olhos e focou exclusivamente na visão fixa de Cléber sentado. -
Tá ficando esclerosado que nem o velho do teu sogro!
O maridão então não resistiu, foi automático. O corpo
levantou rapidamente e aí os parceiros já foram se jogando na frente.
- Não abre essa boca suja pra falar do pai da minha
mulher, seu lixo! - até ameaçou cuspir no moleque. - Tu é um piranho! Tu é um
nada, seu merda!
Mas o mavambo só se preocupou em continuar bebendo e
gargalhando alto, tratando o ataque do mais velho como verdadeira histeria.
- Tá pensando que vai comer viado, vai contar pro mundo e
ninguém vai falar nada, seu cretino!? - o coroa insistiu. - Tu vai se
arrepender, marginal! Tu é um marginal, zé droguinha da favela! Sai de
Subúrbia!
-
Olha pra mim, meu amigo! - Marlon voltou a dizer. - Eu sou novo e tenho cara de
assumir tudo que eu faço. Sou sujeito homem! Não entendo como você e o puto do
teu sogro tão envelhecendo e ficando cego assim. Um bando de coroão mandando
esse papo de que nunca fizeram nada disso, apontando o dedo na cara dos outros
e julgando, de fofoquinha. Para que tá feio, tu não tem idade pra isso!
Todo
mundo ficou quieto, menos Cléber, que continuou reclamando e berrando,
controlado pelos colegas.
-
PARA DE FALAR DO PAI DA PATRÍCIA, SEU MOLEQUE!
- Na
hora de falar dos outros geral gosta, né? Pra assumir que também faz, aí
ninguém tem culhão, não é homem! - o cafuçu estava pondo pra fora tudo que já
estava entalado há tempos. - Tu ainda abre a boca pra dizer que é adulto, que
se sustenta, que trabalha, que isso, que aquilo. Tenho que rir!
Os
amigos começaram a levar um Cléber bêbado e reclamão para longe do novinho
falante, bem disposto a passar a noite argumentando. Aquela era a primeira vez
que Marlon não tentara sair na porrada, permanecendo apenas no bate-boca.
-
Vamo beber, rapeize! - ele até debochou do fato de todo mundo tê-lo deixado
sozinho. - Mereço. Puta merda!
-
Ah, mas tu gosta, né filhote?!
Do
lado dele, o fiel escudeiro, amigo número um de sempre e para todas as horas. O
único que se predispôs a continuar ali, imóvel, mesmo que isso significasse
apoiar o discurso revoltado do mavambo exausto pela fofoquinha da vizinhança.
Os dois amigos riram um do outro.
-
Dessa vez tu botou pra foder, ein?
Marlon
encheu seu copo e o de Vinícius, olhou para ele e levantou os olhos em deboche.
-
Demorei, fala tu? Bando de otário!
Conversa
pós briga para animar os nervos, mas não demorou tanto assim. Em questão de
minutos, Cavalin olhou para o amigo, ficou sério e começou a dizer.
-
Tenho que te contar dois bagulhos, irmão.
-
Manda o papo.
Ele
respirou fundo e riu sincero, contando o número na mão.
-
Primeiro que eu te apóio e fecho contigo em qualquer situação. Tamo junto!
Marlon
não acreditou na leveza do momento, apreciou a humildade do parceiro e fez
questão de estender a mão para cumprimentá-lo. O sorriso veio fácil.
-
Porra, tu é meu fechamento, mano! - bateram os ombros. - Mexeu contigo eu já
compro logo o barulho!
- É
recíproco, viado, pode ter certeza.
Esperou
um pouco antes de prosseguir.
- O
segundo bagulho é que..
Respirou
fundo e sorriu ao dizer.
- Eu
finalmente conheci uma mina fora daqui. E tamo pensando em dar um pulo lá na
minha mãe nesse fim de ano.
Marlon
arregalou os olhos.
- Lá
no..?
- É,
irmão. No México.
Os
olhares de amizade não puderam mentir o poder do momento. Ter amigos,
principalmente no subúrbio, às vezes significa ter que dizer um até logo, e
ninguém melhor do que eles para fazê-lo.
-
Caralho, muita luz pra tu, meu irmão! Tô aqui pro que tu precisar! Vai na fé e
vê se traz umas tequila de lá daquela porra!
Vinícius
começou a rir.
-
Deixa comigo, mano! Muito obrigado por tudo!
Nem
tudo era briga no bairrinho, e mesmo quando era, não passava da emoção se
tornando intensa e muito forte ao redor de tantos homens reunidos num só lugar.
A concentração de hormônios no sangue era acima do comum, qualquer exame nos
machos da região certamente confirmaria isso.
- Na
verdade, eu quero te pedir um favor antes de ir. - Cavalin sorriu e colocou a
mão no bolso, retirando um objeto pequeno, que deixou o cafuçu muito curioso.
- Tu
tá maluco?
A
reação fez o amigo barbeiro sorrir de deboche.
-
Não conheço ninguém melhor pra isso, filhote.
Pegou o item com a mão e, sorrindo, aceitou de bom grado,
sendo esta uma das últimas vezes que puderam desfrutar juntos de uma cerveja.
Vinícius e Marlon não voltariam a se ver por um bom tempo, dada a nova
distância planejada pelo barbeiro. E, até o próximo encontro, muita coisa ainda
aconteceria na vida de cada um. A noite acabou saudosista no subúrbio.
[...]
A
figura virou completamente de frente, e aí Cléber observou a tatuagem de
coração, com algo escrito bem na cintura. O rosto tinha algum detalhe
masculino, ou então talvez fosse a voz um tanto quanto grossa. Vai saber? De
qualquer forma, o quarentão deu de frente com a travesti.
- Eu
não tô livre. - falou educada. - Só tô esperando uma pessoa.
O
coroa não conseguiu esconder a feição de curiosidade quando reparou nos
diversos piercings ao longo da orelha da figura à sua frente. No umbigo, no
canto da sobrancelha, e até um em cima do lábio maquiado. Em sua visão
ignorante, era um homem vestido de mulher, travestido, herdando toda a imagem
feminina, não fosse por pouquíssimos detalhes. Em um rápido flash na mente,
Cléber viu a imagem da Pabllo Vittar de calcinha, dançando em sua sala de
estar, se refletir por todas as partes da mente. De tão bêbado, pressionou os
olhos com os dedos e começou a balançar a cabeça, como se precisasse de negar
tudo.
- Me
desculpa, eu.. - tentou dizer.
Mas
foi nesse momento que, surpreendendo o subúrbio e pisando fora do bairrinho, a
imagem de alguém conhecido se fez presente atrás dos dois. A voz séria e cheia
de ódio dominou o perímetro.
- Tá
vendo porque eu não dou moral pra tu?
O
maridão virou o corpo para trás, mas antes mesmo de poder vê-lo, já identificou
o jeito cuspido e insolente de falar. Assim que o viu, foi metralhado pelos
olhos possessivos, ciumentos e taxativos do mavambo.
-
Você? - ele quase não creu. - O que tu tá fazendo aqui?
Mas
o molecote nem quis dar confiança, só olhou para a travesti do lado de Cléber e
passou andando na direção dela. Jogou o braço por cima dos ombros da parceira e
parou de encarar o coroa, saindo acompanhado dela na direção oposta da que
veio.
- Tô
assumindo o que eu faço, velhote. - resmungou, antes de beijar a companheira na
testa e virar o rosto.
Os
dois deixaram o futuro pai de família muito irritado para trás. O marido de
Patrícia saiu andando para onde tinha que ir e xingou muito na mente. Não tinha
mais idade para aguentar as merdas de um adolescente revoltado. Não era pai,
nem tinha filho rebelde. Marlon e a parceira, por sua vez, seguiram na direção
cada vez mais próxima da fronteira com o bairrinho, um abraçado no outro.
-
Quem era aquele cara?
Ele
olhou para baixo e viu o rosto curioso dela ao fazer a pergunta.
-
Não se preocupa com isso. - o cafuçu sabia que ela costumava se preocupar
facilmente. - É só um frustrado que não tá acostumado com o mundo. Aí se
esconde e acha que geral tem que fazer a mesma coisa que ele.
A
travesti o viu explicativo e mais cuidadoso com as palavras, e aí sorriu com os
olhos.
- É
mais um do futebol?
Marlon
só fez que sim com a cabeça.
- Cê
ainda não suporta que se escondam, né?
Pela
primeira vez em muito tempo, o molecote invocado se viu invadido, chegando ao
ponto de coçar a cabeça, de tão sem graça que ficou na frente de outra pessoa.
As palavras até faltaram na hora de saírem da boca.
-
Ah, tu me conhece bem! - tentou disfarçar a falta de jeito. - Cada um faz o que
quer da vida, só não tem que ficar apontando o dedo na cara dos outros.
O
sorriso no rosto da parceira cresceu ainda mais, os dois ainda caminhando lado
a lado, rumo ao começo da madrugada do subúrbio. Um cheiro de calor, na mais
quente sinestesia do olfato que pode existir. Todo mundo tem o próprio odor
favorito de algum lugar. E essa sensação desperta milhões de coisas no corpo. O
subúrbio tem muito dessa energia intensa o rondando, principalmente nas noites
e madrugadas.
- Cê
não muda nunca, Marlon.
Eles
sorriram.
- Tu
também não.
A
mão do mavambo passou pelos finos lábios da travesti.
-
Pra onde vamos?
Ele
colocou a mão no bolso e tirou o mesmo objeto dado por Cavalin antes de partir
para o México. Uma pequena chave, presa no chaveiro do estúdio de barbearia e
do quarto acima do salão. Pelo menos até o retorno do amigo barbeiro, eles
teriam um lugar tranquilo para compartilhar, longe de Subúrbia e da fofoquinha
alheia.
-
Você tá brincando?
A
rapariga reagiu mal à ideia.
- Já
te dei o papo. Bota fé, vai? Confia em m-
- Eu
faço programa, cara. Não posso parar, já te disse isso.
A
travesti sentou na mesa de cimento da pracinha onde chegaram. Rodeada pelos
quatro bancos em direções opostas, bem típico do subúrbio, ela olhou para cima
e viu Marlon olhando ternamente para si, concentrado e muito próximo do rosto.
-
Não dificulta as coisas. Tu tá ligada que não é só isso.
Segurou
a parceira nas mãos e foi chegando mais perto com o corpo. Ela travou o
movimento dele usando a cabeça deitada em seu peitoral, bem por cima do
coração. Naquela posição, pôde escutar a verdade sendo dita diretamente pelo
corpo do garoto, batendo firme por dentro. Não havia futuro reservado a ambos.
- Eu
preciso trabalhar, Marlon.
O
abraço não quis ter fim.
- E
quando que tudo isso vai acabar? - ele perguntou baixinho, enquanto aninhou o
cabelo curto da parceira escutando seus batimentos cardíacos. - Não aguento
mais ficar correndo.
Ela
não soube o que responder. Todas as afirmações sempre eram sentimentalmente
anuladas pelo cafuçu, sendo difícil lidar com o lado explosivamente emocional
dele.
- E
seus amigos?
O
moleque não entendeu.
-
Pararam de mexer contigo?
-
Meu único parceiro foi embora pro México. - respondeu baixo. - Tem os malucos
do fut, mas eu não ligo muito pra eles, são tudo otário. Eu só preciso de uma
pessoa.
Mais
uma pausa carregada de batimentos cardíacos. A verso da mão perfumada alisou o
rosto bruto do rapaz, que começou a mexer a cabeça para retribuir o carinho
sendo feito.
-
Você tá virando um homem muito fofo.
Ele
virou de frente para o rosto dela e então se olharam por um longo momento,
acompanhados e guiados pelo silêncio das emoções. Basta parar e olhar no fundo
dos olhos da pessoa, deixar que a ausência de barulho diga o que não pode ser
verbalizado, posto em palavras. Os corpos reagem na maior das sinceridades
quando isso acontece, é muito mais difícil trair a linguagem corporal do que a
verbal.
-
Para de graça. Eu tô é doido pra te beijar, e tu só me enrolando.
-
Não podemos. - engoliu a seco. - Já conversamos sobre isso, cê sabe.
Ficou
mudo, prestes a tocá-la, com todo o cuidado de quem toca algo muito valioso e
bastante importante, precioso para si.
- Eu
acho que cê merece alguém melhor do que eu.
Quase
doeu nele.
-
Não. Tu que ainda não se deu uma chance.
Ficaram
se olhando por alguns segundos, um muito conhecedor do outro, ambos cheios de
propriedades para falar.
-
Preciso ir. - ela quem falou. - Tá na hora.
-
Mas ainda nem deu o tempo!
A
reclamação foi autêntica.
- Eu
não quero seu dinheiro. Já te falei, a gente tem que ganhar, não perder grana. Se
não, não adianta nada.
-
Não faz isso comigo, por favor! - o cafuçu apelou. - Não sei mais como te pedir
isso!
A
parceira então deu um beijo em seu rosto e tratou de se retirar dali. Estava
decidida.
-
Então, por favor. - foi difícil dizer, mas ela precisava fazê-lo. - Não me pede
mais nada, Marlon.
Assim
terminava a noite do subúrbio, com Marlon ficando sozinho e observando a
travesti indo embora, de costas para si, seguindo o próprio rumo
individualmente, com o dragão tatuado nas costas saindo de seu campo de visão.
Sem poder fazer nada, ele só esperou que a imagem dela sumisse lentamente no
escuro adiante, além da avenida. O fogo então explodiu no coração e, num
centésimo de segundo, dominou completamente o restante de seu corpo. Cheio de
energia e descontrolado, ele deu o primeiro passo em qualquer direção, ainda de
pé na pracinha, e chutou a primeira coisa que viu.
-
AAAARGH! - gritou de ódio noite a dentro. - ÓÓÓDIO!! GRRRRR
Deixar os demônios se libertarem pelas ruas do subúrbio é
o que todo mundo faz, nem que seja uma vez na vida. Quem nunca foi curar o ódio
e a raiva no meio da rua? Ali estava o molecote irritado, tomado pelo efeito da
fofoquinha chegando a si. Como pôde se controlar por tanto tempo? Seu melhor
amigo saiu do país, o tempo investindo na travesti estava sendo desconsiderado
por ela, e agora estava completamente a mercê de si mesmo. Os punhos de Marlon
se encheram de raiva mais uma vez. Os momentos recentes dos encontros com os
colegas foram ressurgindo na mente, reavivando a raiva interna do moleque e o
deixando em ponto de fúria. Abaixo dos pés, a lixeira da praça em pedaços,
completamente destruída. Na cabeça, somente a imagem de Cléber o chamando de
piranho, fedelho e merdinha. O fogo em seu corpo tinha um nome: vingança. O maridão,
por sua vez, àquela hora já estava em casa, deitado e dormindo bêbado, na paz e
tranquilidade da própria cama. Semelhante ao mavambo irritado, sozinho. Talvez
eles compartilhassem mais detalhes do que as oportunidade pudessem mostrar. O
laço de raiva que construíram era a prova viva do quão opostos eram, e isso,
para os dois, já era mais do que suficiente de ter que se lidar.
-
Esse otário fez alguma coisa contigo, irmão?
Os
olhos negros miraram os verdes e assustados de Apolo. Essa foi a primeira vez
na vida que ele interagiu diretamente com Menó, o mesmo macho que passou de
moto mais cedo e apenas o observou, com aquele mesmo par de olhos tão negros
quanto os cabelos e todos os outros pelos do corpo. As pessoas normalmente
tinham pelos castanhos escuros, mas os dele não, eram bem negros mesmo, dando
uma beleza fora do normal pro molecote. Estava sem blusa, solto na noite da
favela, sentado no banco do bar, de frente para Apolo e encarando os olhos
verdes de um dos herdeiros do mundo, nas próprias palavras da já falecida mãe.
Peças em pleno movimento através do solo do tabuleiro da vida.
-
"Faça a diferença nesse mundo, porque ele é dos homens, portanto também é
seu." - veio na mente do funcionário do bar.
-
Não, ele.. - Apolo começou a responder.
E aí
parou e pensou. Era melhor contar a verdade e correr o risco de ser julgado e
questionado quanto sua sexualidade, ou então dizer que nada aconteceu,
disfarçar e alegar mero mal entendido com Cazé? Ele era um homem diferente dos
normais, então optou pelo que sua natureza mandou.
-
Ele me cercou no canto, eu fiquei nervoso e..
Menó
franziu a testa e bateu a mão no balcão.
- Eu
sabia que esse otário tava arrumando sarna pra se coçar. - grunhiu. - Deixa ele
comigo, maluco!
- Eu
só fiquei assustado, sabe? Não quero problemas, porque sou novo aqui. - foi
falando e pegou quatro litrões de cerveja no congelador. - E preciso muito
desse emprego.
O
outro levantou os braços e se despreguiçou, abrindo o bocão e mostrando todas
as presas. Aquele era um porte no qual qualquer homossexual amante de suburbano
ia querer se jogar, se esbaldar, dormir de conchinha e sentir os poucos pelos
do meio do peitoral sarrando nas costas. O par de coxas de pelos negros e
chamativos era cheio, daquele que você quer em cima de você à noite. Apolo teve
que se controlar para não paralisar novamente diante da visão das axilas e dos
bíceps bem destacados do motoqueiro. Não fosse por ele, estaria nas mãos sujas
de Cazé.
- Tu
é amigo da Íris?
-
Sou. Meu nome é Apolo.
Educado
como sempre, esticou a mão e o cafuçu parou, olhou para o gesto e riu do
excesso de compostura, mas apertou.
-
Menó. - preferiu por manter o apelido.
-
Menó? - o novinho repetiu.
O
aperto continuou, caloroso e forte. O sorriso do mavambo surgiu e as raras
covinhas vieram junto.
-
Menó.
[...]
-
Menó, cê tá..
Tentou dizer, porém fora impactada
pelo que viu. A figura máscula e seminua diante de si abriu os olhos negros e
sorriu, forçando as raras covinhas. O corpo negro e molhado estava com todos os
pelos completamente brancos, como se a raiva e resignação que ele sentiu
tivessem catalisado o processo de embranquecimento dos pelos. Mais do que
nunca, diante de Polly, o mavambo pareceu um dragão saindo da água, tamanha
rebeldia aparente no rosto, mesmo quieto, além dos olhos vermelhos da maconha e
o contraste entre o corpo completamente negro e os cabelos totalmente brancos.
O homem esticou a mão e fez que queria cumprimentá-la, como se fosse a primeira
vez na vida.
-
Marlon.
Ela
quase não acreditou na confidência. Sorriu junto com ele e apertou sua mão.
Rindo, ele tratou de ligar o chuveiro e permanecer com metade do corpo se
molhando e a outra metade de fora, olhando para Polly e a convidando.
-
Marlon? - ela repetiu.
- É
meu nome. Achou feio?
A
amiga aceitou o convite e o deu a mão, topando ir com ele para baixo d'água,
para tirar o produto do cabelo.
-
Não, não! Só não achei que Menó fosse de Marlon. - admitiu. - Nunca ia
adivinhar!
Os
olhos verdes marcaram nos vermelhos e negros e entraram em comunhão. Harmonia
mútua, paz, intensidade, calor, tudo ao mesmo tempo.
-
Pelo menos não é nome de boneca,.. - ele debochou e riu. - "Boneca".
Ela
gostou e sorriu sincera.
-
Boneca? - repetiu, se adaptando. - Eu..
As
mãos do cafuçu vieram para as laterais do rosto da parceira e a puxaram de
leve, sem pressa, como se ele quisesse vê-la plenamente antes de finalmente
fazer o que queria fazer. Observou os lábios carnudos, os olhos verdes e tão
profundos, conhecedores de si, e se viu refletido neles. Os mesmos vícios de
homens egocêntricos, só que em épocas diferentes.
-
Sim. Minha Boneca! - completou.
[...]
Um
dia, depois de iniciado o envolvimento com Polly e após outras vezes em que
ambos transaram na caminha apertada dela, Marlon procurou a parceira em casa e
perguntou sobre uma dúvida com a qual estava incomodado.
- Tu
e a Íris.. - começou.
Boneca
sabia que uma hora a pergunta viria, porque, toda segunda-feira, quando, de
fato, saía com a amiga para fazer um ou outro programa que julgassem tranquilo
de fazer, sempre em dupla, acabavam se encontrando com Menó de plantão na
entrada da favela. Ele não tinha perguntado até então, mas com certeza havia
percebido, principalmente pelo estado em que as moças costumavam chegar,
alcoolizadas, por vezes drogadas e caindo pelos muros, descabeladas, suadas,
com peças de roupa faltando, além de marcas pelo corpo.
- ..
andam fazendo programa?
Na
cintura, a pistola presa, como se fosse uma forma de ajudar a lidar com
determinados problemas, mas sem causar qualquer pânico à Boneca. A sinceridade,
inclusive, era a marca dela, principalmente pelo jeito humilde e didático que
tinha de explicar as mais complexas coisas.
-
Não vou mentir. - foi forte. - A gente faz.
Ele
colocou as mãos na cabeça e fez cara de preocupado, dando meia volta na sala da
casa da parceira e ficando momentaneamente de costas para ela.
- Tu
fala assim tão natural, Polly? Isso é justo? - elevou o tom de voz, mesmo não
querendo ser grosso. - Tu acha que tu merece isso?
-
Não é questão de justiça ou merecimento, Menó. - usou o nome de guerra dele. -
De verdade, cara! Quando a gente transou pela primeira vez, lá no beco, eu já
tinha decidido fazer programa. Já tinha até conversado com a Íris, e já até
tinha ganhado grana de um cara..
Foi
o fim saber dos detalhes. Por lembrar do indivíduo em questão, a mente
arrependida de Boneca sentiu um pouco de ranço por aquela noite em específico,
a primeira na vida de prostituição.
-
Grana de um cara? Que treta é essa, Polly? Tu tem que ficar ganhando grana de
macho na rua, porra!? - reclamou. - Eu sou o que teu?
Ela
ficou muda, sem saber como proceder na argumentação com um homem nervoso e
quase fora de si, de ciúmes e indignação. Para ela, as escolhas e a
seletividade da profissão. Para ele, a incapacidade de compreendê-la. Lembram
quando eu disse que só faltava a possessividade para fechar o combo de alfa?
- É
o que eu faço, Marlon!
-
Como que não é questão de merecimento? É questão de que, então?
Parou,
pensou um pouco, mirou os olhos verdes nos escuros dele e respondeu.
- É
questão de entendimento. De cê me entender da mesma forma que eu te entendo!
-
Mas como vô entender uma parada dessa, Boneca? - gesticulou nervoso. - Como tu
vai ser minha mina assim?
A
loira suspirou e encheu o peito de ar.
-
Sua mina, Marlon?! De que jeito! - se indignou. - Cê não consegue me aceitar
como garota de programa, como pode aceitar como sua mina?
Ah,
o pesado fardo de uma deusa! Suburbana, ainda por cima, herdeira da complexa e
ao mesmo tempo simples e prática genética da família de Suzi, sua mãe
biológica. Compartilhavam dos mesmos olhos verdes, inclusive.
- Da
mesma forma quando eu te conheci, cê já era traficante. Por mais que isso
também me doa e me preocupe às vezes, eu continuo do seu lado, cara! - falou
decidida. - Eu queria que cê fizesse o mesmo. Não posso pedir desculpas, porque
cê tem que entender isso pra poder gostar de mim!
A
franqueza preencheu as bilhas esverdeadas de esperança. Ficar com o marginal
estava em seus planos, ainda que implicasse correr determinados riscos, então
estava sendo, acima de tudo, sincera e franca consigo e com ele. Só que o
cafuçu não conseguia se ver dividindo aquela com quem queria viver com o resto
do mundo de homens, principalmente levando em conta os que conhecia. Pensou no
mais nojento deles, Cazé, por exemplo, e nem quis imaginá-lo pagando para
montar no lombo de sua mina e executá-la sexualmente, como se fosse seu objeto
pessoal, uma bonequinha de luxo pela qual pagou pelo uso, dominação, submissão
e desuso. Só a pretensão dessa ideia já causava ira no sangue rebelde do molecote
invocado.
-
Então vai chegar uma hora que eu vô ter que pagar pra te ver, é isso? - o
mavambo também foi sincero, usando o tom de voz mais humilde que pôde, o que
não foi nada difícil. - É assim que eu me sinto, sem neurose!
Ela
se colocou um pouco na perspectiva dele, mediante o que considerou que o homem
seria capaz de pensar, da maneira dele. Difícil, tremendo esforço!
-
Não! - foi incisiva. - É claro que não! É só que eu preciso trabalhar, Marlon!
Cê largaria a bandidagem agora, nesse momento, pra ficar comigo?
O
marginal nem pensou duas vezes antes de responder.
- E
aí como que a gente ia viver, minha Boneca? Como que a gente ia fazer churrasco
na laje domingo, dar role de moto na faveça, curtir o bailão arregado sexta?
Ela
foi fazendo sim com a cabeça, lembrando de tudo que estava curtindo ao lado do
macho recentemente.
-
Então! É isso, Marlon! Cê precisa trabalhar, eu também preciso. Somos só nós
dois no mundo, não somos? Então eu tenho que ajudar, cê não pode sustentar tudo
sozinho!
-
Mas tem que ser assim, Boneca? - insistiu. - E o bar? Largou?!
- O
bar não dá só pra mim. Nunca deu, por isso eu disse que já tava pensando em
fazer esses serviços extras desde antes da gente se envolver!
Alisou
o rosto bruto do cafuçu lentamente, passando os dedos finos, de unhas feitas e
longas, pela barbicha descolorida dele. Nunca esteve tão parecido com um
dragão, principalmente sendo alisado e acarinhado por uma bonequinha educada e
dedicada, com a qual jamais conseguiria evocar ódio. As presas e o fogo na boca
estavam escondidos. A rainha do tabuleiro estava diante dos olhos ferinos do
cavalo ressentido.
[...]
Num episódio em específico, depois
que Polly chegou em casa bêbada, ela escutou o barulho da moto buzinando no
portãozinho do barraco, seguindo da voz familiar do trafica chamando por seu
nome. Mesmo com as brigas frequentes, a rapariga respirou fundo, pensou por um
breve momento, e acabou deixando que o amante entrasse. Mas foi só ver o estado
dela que ele começou a reclamar, não conseguindo deixar de lado os detalhes da
vida profissional paralela da mina que tanto queria chamar de sua.
- Da
onde tu tá vindo, Boneca?
A
loira bufou.
-
Não me faz pergunta que cê já sabe a resposta, por favor!
Mas
era difícil, ele jogou os braços para cima e subiu o tom de voz, olhando fixo e
irado para a travesti.
-
Não dá, viado! Eu não aguento isso, não! - pôs a mão na cabeça, esfregou o
rosto e tornou a olhá-la. - Tu só pode tá brincando comigo, Polly!
Os
olhos verdes pararam bem perto dele.
- É,
eu sou brincalhona, gosto de tirar uma com a cara dos outros! - fechou a cara
pela primeira vez, saturada do clima pouco amigável. - Tá vendo como eu to
rindo?!
A
atitude ferveu o sangue grosso correndo pelas veias e artérias do físico
marginal de Marlon. Num só movimento, ele chegou toda a corpulência para frente
e se conteve ao máximo para não segurar e xingar a loira.
-
Olha lá como que tu fala comigo, ein? - apontou na cara dela. - Já num dei o
papo que ninguém mais fala assim comigo, ô porra!?
A
cara feia da moça só fez piorar, com a raiva aflorando por entre as
sobrancelhas franzidas, a força da testa e da boca indicando toda a indignação
dentro.
-
Tira o dedo da minha cara, homem! Tá maluco? Homem nenhum põe o dedo na minha
cara, seu marginal! Tá pensando que eu tenho medo de macho, Marlon? Encosta um
dedo desse em mim e cê não tem noção da merda que vai arrumar pra tua vida, seu
otário!
- TÁ
ME AMEAÇANDO, SUA CADELA?
O
cafuçu gritou, apontando o dedo bem no meio do rosto da travesti.
-
FALA BAIXO NA MINHA CASA, SEU PUTO!
Cara
na cara, os lábios se tocando, um falando dentro da boca do outro. De um lado,
a energia malandra do macho do morro. Do outro, a tênue e sinuosa linha do
controle sentimental que uma trava suburbana possui. Aglomerados de simbolismos
em plena rota de colisão, prontos para se matarem na sala da casinha de Polly.
[...]
- Tô
chegando num ponto onde não quero mais te ver assim, Boneca. Papo reto! - ele
tentou explicar mais uma vez. - Eu te quero comigo sempre, tá ligado? Não quero
que tu vá pra outro canto, ou que tu saia de noite..
Disse
como se estivesse pedindo, muito embora soubesse da dificuldade em colocar os
pensamentos em palavras e ser entendido.
- Cê
pararia por mim?
- Já
te dei esse papo, pô. Como que a gente ia viver?
-
Pois é! Por isso que a gente tem que trabalhar. Não podemos ficar aqui assim,
deitados e transando o dia todo!
No
dia desse papo, Marlon tornou a pagá-la pelo programa, sendo que esses
pagamentos enchiam o peito da travesti de tristeza, porque ela sabia do quanto
era admirada e querida por ele. Só que nada disso era da forma que deveria ser,
da maneira que teria que funcionar. Então, um dia, depois que pagá-la virou um
péssimo hábito, Polly reclamou.
- Eu
não me importo de pagar pra estar contigo, Boneca! - ele sorriu. - Nem que eu
morra fazendo isso!
Foi
uma resposta dolorosa de se ouvir.
-
Olha o que cê tá dizendo pra mim?
- Já
mandei o papo reto que me amarro na tua. Já falei que te amo! É difícil
reconhecer? Eu só quero te dar o mundo, Boneca! - alisou o cabelo dela quando
disse isso. - Tu que não colabora!
-
Mas esse mundo é seu, Marlon. O mundo pra mim é cê e eu, a gente se aceitando e
se entendendo, só que simplesmente não funciona!
A
ironia sempre acabava aflorando, quanto mais delicado e incompreendido o tema.
-
Claro! Tu se deitando com todo mundo, chegando em casa marcada, bêbada, usada.
É isso que eu mereço?
A
constatação fez os dois olhares poderosos se desencontrarem pela primeira vez
na vida. O verde não mais viu a cor negra sendo realçada pelo vermelho vivo do
THC na corrente sanguínea, e, se viu, não foi da mesma forma. A profundidade se
transformou em algo raso, superficial, e aquele foi só o começo. Na frente de
Polly, estava a mais pura e genuína manifestação do egoísmo supremo do homem
possessivo. Foi nesse instante, observando as respostas, reações e detalhes
físicos de Marlon, que ela percebeu que ele nunca mudaria de pensamento.
-
Não, Menó! Eu acho que, pra ser sincera.. - começou a dizer, e engoliu a seco.
- Cê merece alguém bem melhor do que eu. Cê merece algo muito melhor do que..
isso..
Mais
uma vez, completando a sequência de indas e vindas dos amantes, eles ficaram
mais algumas semanas sem contato, com ambos pensando que, de fato, não
voltariam a se ver mais. Até que, numa noite quente do subúrbio, Marlon invadiu
o barraco vazio da parceira e esperou deitado na cama dela, até que a mesma
voltasse do trabalho. Estava decidido a chegar num acordo, muito cansado de
sempre se distanciarem, porque era aquilo que o fazia se entregar ainda mais
aos vícios do álcool e do pó, totalmente desorientado. Quando Polly chegou e
acendeu a luz, ambos se assustaram, ela com ele e ele com ela. De um lado, um
cafuçu marrento e escondido no quarto. Do outro, uma travesti com uma parte do
cabelo raspado, marcas pelo corpo, no rosto, caindo aos pedaços, machucada e
toda cortada, ralada, o sangue escuro escorrendo do ventre, das costas e da
parte interna de uma das coxas.
-
Boneca..
Ele
colocou as mãos à frente do rosto, como se não pudesse vê-la naquele estado, e
a voz começou a embargar.
-
Boneca, você..
As
palavras não saíram. Ela só abaixou a cabeça e se jogou na cama, sendo acudida
pelo parceiro assustado e muito preocupado. Até que o trafica começou a chorar
e ela ouviu.
- Cê
tá.. chorando?
Ele
não quis dizer que sim ou não, mas justificou.
- É
difícil ver meu mundo caindo e não poder fazer nada! - tentou falar sem o choro
atropelar. - Mas eu entendo, né isso que tu quer de mim? Que eu entenda? Eu
tenho que te entender, eu luto pra te entender! É difícil, mas luto!
[...]
- TU
TÁ MALUCA DE SAIR?
- Já
te disse que sou maluca sim, Marlon! Cê que não me escuta e ainda não saiu
dessa porra de facção! - cobrou dele.
Passaram
meia hora debaixo da troca de tiros, ilhados e isolados pelos outros
traficantes confrontando os policiais, de cima pra baixo e de baixo pra cima.
- Tu
vai largar o teu?
Olhos
nos olhos.
- Tá ficando difícil, cara! Tá ficando muito difícil de
te amar nesse lugar! - ela falou.
[...]
- O
que cê viu em mim? - ela perguntou uma vez.
- Eu
não vi, eu vejo. Tu é a única pessoa que eu preciso comigo!
Os
olhos verdes mais vazios do que nunca, sem brilho. Uso. Desuso.
- Eu
acho que cê merece alguém melhor do que eu, Marlon..
Se
abraçaram, ele beijou a testa suada dela e sentiu o cheiro dos cabelos curtos e
loiros.
-
Nosso ódio pelo mundo é parecido. Se não for contigo, meu amor.. Eu não quero
com mais ninguém!
[...]
- O
papo que rola é que essa praga aí não é macho, não, bandido! - o líder foi
ofensivo ao dizer. - E tu sabe que aqui nós não mexe com essas coisa, não! Tá
errado, Deus não gosta!
Polly
cerrou as mãos, querendo respondê-lo, mas ela entendia que homens em grande
quantidade perdem facilmente o controle quando decidem entrar em guerra. Ele
tampouco tinha noção que estava falando diretamente com a maior de todas as
Deusas vivas.
- Ou
ela sai do morro, ou saem os dois!
O
chefe sequer deu chance de argumentarem. Marlon se sentiu cheio de ódio,
pensativo em sacar a pistola e acabar de vez com aquilo. Só que, se ele tinha
uma arma, eles tinham várias e estavam em maior número. Além disso, ao seu lado
estava a pessoa por quem era apaixonado, seu amor, com quem compartilhava a
vida há algum tempo.
-
Vocês tem problema? - quis tirar satisfação.
Mas
o pai da facção respondeu na lata.
- Tu
vai questionar, neguinho?
Os
olhos raivosos se bateram e a visão chocou em pleno ar. Por trás dos ombros do
líder, o sorriso irônico do responsável por fazer toda a fofoquinha.
-
Por que tu não vai embora com ela, Menó? - Cazé debochou. - Menos dois caô no
pedaço!
Riu
cheio de deboche e suspirou profundamente, ciente de que tinha acabado com os
planos dos dois.
-
Mas eu vo-
Ele
ia começar a dizer, porém foi interrompido.
-
Não, cê não vai, não! - a voz embargada de Boneca sobrepôs a sua. - Cê precisa
trabalhar, eu preciso trabalhar também! Cê vai ficar aqui e eu vou sobreviver
lá fora, cada um trabalhando do seu jeito, como foi desde o começo!
Suplicou,
como último desejo diante do júri de marginais. Os olhos verdes chorosos e
vazios, mirando os negros de Marlon. Triste e sem conseguir parar de chorar,
ele não conseguiu acompanhá-la até em casa, tampouco ajudou a arrumar as coisas
para sair do morro. Uma das últimas conversas que tiveram ocorreu horas antes
da mudança, quando ele parou de moto em frente ao portão do barraco da loira e
a viu terminando de encaixotar algumas coisas. Quando percebeu que estava sendo
vista, ela veio até à grade da entrada e tentou sorrir para ele.
- Cê
não suporta viver escondido, né?
Só
ela tinha o poder de lê-lo e invadi-lo assim tão perfeitamente. As palavras até
faltaram na hora de sair da boca. As lágrimas escorrendo pelo rosto bruto só
evidenciou o quão melancólico estava o rebelde.
- Tu
me conhece bem! Cada um faz o que quer da vida, eles não tem porquê julgar o
que os outros fazem!
Ela
finalmente conseguiu sorrir, esticou o braço fino pelo portão e passou as unhas
pontudas pela barbicha branca do rapaz, que só conseguiu segurar os soluços.
-
São regras, meu dragão revoltado!
- A
gente tem que quebrar!
Sorrisos
tristes.
- Cê
não vai mudar nunca, né?
Ele
fez que não com a cabeça e engoliu a seco.
- Eu
espero que tu também não!
Aquele
era o fim. A ruína de dois mundos desabando por inteiros, a incerteza de todos
os movimentos no tabuleiro.
-
Trabalha muito, Marlon! Trabalha pra fazer dinheiro, que a gente com certeza se
encontra! - prometeu.
-
Como? Eu aqui e tu lá fora, solta nesse mundo sujo e perigoso?!
Não
estava errado.
- A
gente ganha mais quando tá separado, homem! - foi assertiva na afirmação. - Não
deixa ninguém descobrir os seus planos!
-
Como vô saber onde tu tá? - perguntou, por último.
Sorrindo,
ela olhou para o céu, respirou e respondeu sorrindo.
- A gente se acha! O subúrbio, eu tenho certeza que esse
fogo do asfalto vai juntar tudo de novo!
- Coé, rapá?! - a voz familiar veio em tom de surpresa. -
Não sabe mais bater no caralho da porta, não?
O militar se assustou.
- Você!?
- Tu tá maluco? - o cafuçu cruzou os braços e fechou a
cara. - Tava esperando quem? O teu marido? Ele mora no México agora.
Um macho de corpo bruto, robusto, taludo, dos pelos
descoloridos num branco absoluto, contrastando com a pele lustrada de pura
melanina. Sentado todo largado, basicamente jogado num sofazinho, o par de
pernas abertas, uma jaqueta militar por cima de uma poltrona e de short de
dormir.
- Você.. me conhece? - Ruan estava transtornado por
encontrá-lo ali.
- Tá me gastando? - esfregou o nariz vermelho e fungou
profundamente antes de responder. - Tu andava colado no Cavalin, Ruan.
Pausa e apenas os dois se olhando, num bom espaço entre
eles. O salão continuava o mesmo, sem qualquer mudança, com as cadeiras
giratórias de corte nas mesmíssimas posições deixadas por Vinícius antes de ir
embora.
- Sim. - o milico concordou com a cabeça. - Não achei que
você fosse lembrar. A gente nem nunca se falou, Marlon.
Os olhos do cafuçu rebelde estavam vermelhos e negros,
dando a impressão de que ele era uma criatura completamente diferente das
outras que habitavam o subúrbio. Ao redor, várias nuvens de fumaça da maconha
que estava fumando, o baseado ainda aceso entre os dedos. Marca de pó branco no
nariz.
- Lembro até hoje do dia que eu tava aqui dando um trato
na régua e tu brotou pela primeira vez.
- Eu?
- Não, eu. - falou bem irônico. - Gasta minha onda não,
rapá.
Ruan pôde jurar que já viu aqueles olhos antes em algum
outro lugar, talvez em alguma fera ou besta pertinente ao folclore suburbano.
Uma lenda por esquina.
- Por que você lembra disso?
- Por que? - repetiu. - Porque depois que tu meteu o pé,
eu tive que aturar semanas de falação ao teu respeito. Só por isso, só.
Largado e jogado na poltrona, dava pra ver que os pelos
das pernas e das axilas de Marlon também eram brancos, em tons descoloridos. A
lateral do rosto tinha costeletas crescendo e elas já eram claras, dando a
certeza de que o cafuçu mantinha o corpo atualizado.
- O que?
- É isso daí que tu escutou mesmo.
Ruan custou até que a ficha caísse. Em outras palavras, o
melhor amigo de Vinícius Cavalin estava revelando que o barbeiro passou semanas
falando sobre o militar, após terem se conhecido. Como lidar com essa
informação, dada a atual distância entre todos eles? E o principal..
- Mas eu não tenho nada a ver com isso. - Marlon pontuou.
Mas nem pontuando o fotógrafo conseguiu reagir.
- Acorda, rapá!
- Foi mal, é que.. eu tava enchendo a cara e ainda tô..
meio.. - botou a mão no rosto. - .. lerdo.
- Tô ligado. - abriu mais as pernas e deixou o volume
acumular no short de dormir. - Hoje foi o dia da pelada com o pelotão. Tô
ligado, tô muito ligado.
Levantou a corpulência num impulso, ficou de pé onde
estava e se pôs a alisar o bigode fininho e descolorido com os dedos polegar e
indicador da mesma mão. Sem blusa, o tórax definido do ex traficante ficou todo
visível, e Ruan se viu absolutamente hipnotizado com a visão do oblíquo do marrento,
as famosas descidas nas laterais da cintura, onde o short ficou descendo e
mostrando os pentelhos descoloridos abaixo do umbigo.
- Sim, rolou a pelada hoje. Aliás, por que você não foi
lá? - o fotógrafo lembrou que Marlon fazia parte do círculo de amigos do
restante dos homens e tentou desviar do assunto anterior. - A galera sentiu sua
falta.
Além de vermelhos e negros, os olhos do mavambinho
ficaram distantes, num brilho perto de sumir da consciência. Assim como os
pelos do físico negro, Marlon também trazia a cor branca na lateral do nariz,
em forma de pó claro. Vícios, metáforas e ironias.
- Sentiu, é? - pôs a mão por dentro do short de dormir e
andou na direção do novinho. - Que engraçado!
- O que?
-
Foi só o Cavalin ralar que tu passou a andar com o resto do bonde. - suspendeu
as sobrancelhas brancas riscadas na moda, cruzou os braços e parou na frente de
Ruan. - Eu botava mó fé de que tu ia sumir, que nem eu fiz depois que ele
ralou.
O
recruta engoliu a seco aquela constatação.
-
Foi porque só depois eu descobri que o pessoal também era do quartel. Eu sou
militar, não sei se você sabe.
-
Sei, sei.
Ruan
não quis ficar pra trás, mesmo começando a se sentir acuado pela situação se
desenrolando.
-
Desculpa perguntar, mas como que você conseguiu entrar aqui?
-
Meu parceiro deixou a chave comigo quando ralou. - continuou mexendo na mala
por dentro da roupa, alisando os pentelhos brancos na pele negra. - Mas tu sabe
bem disso, do jeito que era colado com ele.
A
vontade de ir embora surgiu, mas isso não pareceu tão simples de se fazer, não
com um molecote com cara de ruim e tomado de droga parado diante de si.
-
Ele deve ter comentado e eu não lembrava, então. - tentou forçar um sorriso.
- Mas manda o papo, a galera sentiu minha falta lá, foi?
- imóvel, encarando o novinho sem nem piscar. - Falaram bastante de mim? Te
confessar que minha orelha tava queimando mais do que o meu nariz, aqui nesse
salão.
Marlon riu e esfregou novamente o nariz avermelhado,
depois respirou profundamente, despreguiçando o corpo definido e másculo, de
quem ontem tinha 17. Braços ao alto, pés nas pontas dos dedos, panturrilhas e
coxas peludas torneando e enrijecendo pra sustentar o peso, axilas tão brancas
quanto os outros pelos do corpo.
- HHhmmmmm! - gemeu, enquanto liberou a preguiça de tanta
corpulência.
O short de dormir descendo, exibindo o começo dos
pentelhos e a rigidez de um púbis viciado em ir e vir, empurrar, fazer e
desfazer cabaço de cu em boca. O ventre louco de um ex traficante.
- Bom.. - Ruan começou a falar, tentando disfarçar as
manjadas. - A galera sempre lembra, né? Você sabe, sempre rola um comentário
sobre quem não vai. Falaram do Valdemir também. E do Cavalin, é claro.
Foi aí que, vidrado nos pés do cafuçu, percebeu que ele
estava de chinelos, sendo que já havia um par no tapete da porta de entrada do
estúdio.
- Tô ligado, tô ligado. - riu. - E o maridão ciumento,
lembrou de mim também?
Pronto, chegaram onde o fotógrafo sentiu que
inevitavelmente chegariam, a partir daí nem teve porque fazer muito rodeio ou
enrolar nas respostas.
- Não deve ser novidade pra você as coisas que o Cléber
diz, né?
- É, é, tu tá ligado. - deu uma volta ao redor de Ruan. -
Ele só tem gogó, só.
- Pois é, até eu achei ele um pouco chato. - aqui, Ruan
cometeu o erro primordial, tradicional e final que se espalha por todas as ruas
do subúrbio. - O pior de tudo é ele ficar espalhando o que o Davi fez com você,
né? Pra que essa fofoquinha toda?
Se existem mesmo os pecados, talvez a fofoca seja um
deles. No subúrbio do Rio de Janeiro não é fofoca, é apenas engenharia social.
- É o que? - Marlon fechou a cara no ato. - O que o Davi
fez comigo, que até eu não tô ligado?!
O
militar travou, semelhante a quando estava passando diante do beco, viu a luz
do estúdio acesa e parou bruscamente. E talvez, vendo agora, fosse realmente
melhor não ter parado, entrado e dado de cara com um jovem rebelde e drogado,
cheio de perguntas e inquisições.
-
Não, acho que na verdade foi o que você fez com o Davi, não? - nervoso, Ruan se
pegou confuso e hesitante diante do olhar amistoso e mais do que desconfiado do
mavambinho. - Será que eu tô fazendo confusão?
-
Porra, mas o que foi que eu fiz com o Davi, viado? - o tom de voz subiu, mas
foi pela emoção da curiosidade. - Tá maluco?
-
Não fui eu quem disse isso, Marlon. - se justificou. - Por favor, eu não tenho
culpa nenhuma!
-
Mas então tu dá o papo reto, porra! O que foi que esses puto falarem lá de mim?
Eu já sabia que o otário do Davi tava metido nessa merda, mas quero saber o que
foi que ele falou que fez comigo.
O milico
começou a andar de um lado pro outro, pensando no desenrolar que a fofoca
estava tendo, mesmo sem querer. Mochila nas costas, câmera guardada, o corpo
ainda quente pela noite intensa e marcante, e fechando com a imposição de um
macho truculento sobre si. Era tudo muito inédito, um dia e tanto.
-
Olha, eu posso tá fazendo confusão, viu? Eu nem sei mais se foi mesmo esse Davi
que falou isso, ou se foi o Cléber que disse que ele falou isso. Porra, que
viagem mais errada essa!
-
Não me interessa, Ruan. Eu só quero motivo pra afundar a fuça do filho do
Fonseca no asfalto de Subúrbia. - disse isso e apertou o ombro dele com força.
- E depois vou afundar o focinho do próprio Fonseca, aquele filho da puta! Tu
tem certeza que não vai lembrar?
Momento
de tensão e respiração dos dois.
- Eu
só acho que.. eu não devia fazer parte dessa fofoquinha, sabe? Comentei uma
coisa que eu nem lembro, muito sem querer, não é justo você se irritar com os
outros por isso. Eles podem não ter feito nada disso, cara!
- E
daí? É sobre mim, sou eu quem decido isso!
O
recruta sentiu a pressão e, mesmo tendo treinamento militar e uma resistência
física maior que o normal, percebeu o nível de força do mavambo sendo testada
no ombro.
-
Mais um motivo pra eu não querer me meter nisso.
- Meio
tarde pra tu mandar uma dessa, não acha, não? - usou o tom irônico. -
"Melhor amigo" do Cavalin. Larga de ser marica e abre logo esse bico,
seu puto!
Até
que, no silêncio absoluto que se seguiu na encarada, duas coisas aconteceram.
Primeiro, o barulho da descarga do vaso sanitário sendo acionada no banheiro,
que só nesse instante Ruan percebeu que estava com a porta fechada e a luz
acesa, e aí imediatamente associou com o par de chinelos na entrada do salão.
-
Tem mais alguém aqui com você?
Segundo,
Marlon ficou muito perto do rapaz, perto até demais. Na curta distância, teve a
péssima e involuntária ideia de fazer o básico: respirar. O ar saiu das
proximidades físicas de Ruan, entrou por seus pulmões e logo encharcou os
alvéolos, penetrando nas trocas químicas de oxigênio para o sangue. Uma
molécula já conhecida pelo físico do marrento entrou novamente na corrente
sanguínea, em contato com seu DNA, como se já não bastasse o forte odor do
perfume derretendo seu cérebro pelas narinas. Ou seria outra droga, tipo o pó?
A droga do feitiço dos sereios? A mágica da colônia da travesti. O crucial
vidro de perfume com a imagem de uma cereja, perdido por cima do balcão do
banheiro do sítio de Sem Rodeio.
-
Que porra de cheiro é esse, moleque? - a frase saiu ríspida e seca, junto com o
segurar no braço do rapaz. - Esse perfume que tu tá usando..
O
milico soube que não adiantaria explicar, até porque a fragrância era de alguém
aleatório, em sua visão. Em sua visão.
- É
um perfume que tá na moda, cara, eu sei lá o nome. Me solta, você tá..!
O
aperto aumentou, Ruan olhou para o rosto de Marlon e teve o mais perigoso e
nostálgico dos vislumbres: a ira. Parecia uma fera, os olhos vermelhos e
negros, cheios de ódio, dois pontos no meio da fuça enfezada. A veia saltada no
meio da testa franzida, a boca emburrada, até que a força no braço do fotógrafo
parou.
- Tu
tem razão. - a consciência tomada pelo efeito de três drogas opostas no mesmo
sangue: maconha, cocaína e o perfume mais familiar do que os próprios segredos.
- Isso não tem nada a ver contigo, é um problema só meu. Hoje, eu..
O
cafuçu fechou os olhos e as mãos, tendo que lidar com uma terrível constatação.
No bolso do short de dormir, o celular mais pesado do que suas
responsabilidades emocionais. Enquanto ele esperava uma resposta chegar para
suprir sua carência, sua carência enviava para ele uma mensagem indireta,
oculta no mundo das sensações. O olfato foi o sentido que esquentou o corpo de
Marlon, e aí Ruan teve a certeza absoluta de que já viu aquele semblante de besta
soltando fumaça antes.
- Eu
acho que tenho que ralar. Não tô.. muito legal. - até pra falar foi complicado.
- Vou colocar um ponto final nessa fofoquinha. Hoje.
-
Não, cara, que isso?! - o novinho tentou inverter as decisões. - Você tem que
ficar aqui, eu que tenho que sair! Já era pra eu estar em casa. Me desculpa por
ter entrado sem bater e ainda trazer esses probl-
-
Ssshhh! - o marrento o silenciou.
Com
pressa, Marlon virou de costas e foi reunindo algumas coisas poucas das quais
se lembrou no momento. Foi nesse relance que Ruan viu as costas largas,
torneadas e definidas do rebelde, com o destaque do trapézio saltado dos ombros
esféricos. Além disso, viu a gigantesca tatuagem tomando toda a largura e o
comprimento, numa imagem enorme do que parecia um mapa visto de cima. O
molecote vestiu a jaqueta de estampa militar sem a blusa por baixo, pegou a
carteira, pôs o boné sobre o cabelo descolorido e se preparou pra sair, tudo de
forma nervosa e acelerada. Estava se entregando ao caos do qual era filho legítimo.
Um réptil draconiano de asas abertas, prestes a cuspir fogo e incendiar tudo.
Game of Thrones? Não, é só o subúrbio do Rio de Janeiro.
- Eu
vou ralar, tu fica aqui. Não tem discussão.
-
Mas.. O que você pensa que vai fazer agora?
- Tu
vai ficar questionando o que eu faço? - parou de reunir as coisas, fitou Ruan
com a encarada sinistra e bufou, só faltou sair a fumaça das narinas estufadas.
- Ah, bem! Pensei.
Correr,
ou melhor, voar pelo mundo era necessário, afinal de contas, um dragão sozinho seria
mais do que suficiente pra incendiar e derrubar uma casa. Ou um casarão. Marlon
só se sentia melhor quando gritava e cuspia fogo no chão incandescente do
subúrbio. Um suburbano apaixonado pelo caos avassalador do tabuleiro.
-
Esse salão é do meu parceiro Cavalin. Tu é chegado nele, num é? Ele é chegado
em tu, então é teu direito também de ficar aqui, que nem eu.
Parecia
uma lenda suburbana, andando em passadas largas e profundas no asfalto,
afundando com pressão e ira as causas e consequências em seu caminho. E o fogo
nos olhos cheios de raiva? Pele negra, todos os pelos brancos, olhos escuros e
vermelhos incandescentes. Ninguém pararia um moleque raivoso como ele, nem
Cléber, nem Fonseca, tampouco Davi.
-
Tudo bem. - Ruan fez que sim com a cabeça e concordou, talvez fosse
interessante dormir uma vez no cheiro que restou de Vinícius no quarto do dito
cujo. - Só.. cuidado com a rua, beleza?
Marlon
desviou o olhar.
- É
a rua que tem que ter cuidado comigo.
[...]
Nessa noite, uma cabeça perturbada
tentou arrumar parte da bagunça mental deixada pelo Passado. Fez tudo isso
depois de cheirar o que restou de cocaína no pino que comprou mais cedo,
adicionando um pouco de arrependimento e ressentimento ao saldo final do começo
da madrugada.
-
"O Davi é da família do Fonseca e do Cléber, maluco, então com certeza
também não é flor que se cheire. Tu acha mesmo que ia sair um fruto bom daquela
árvore, se a raiz já tá toda podre?" - a voz do melhor amigo estava ecoando
no fundo da mente, mais do que Marlon realmente gostaria. - Merda! O Cavalin
tava certo!
A
partir daquele momento, como num estalo crucial de dedos, o rumo final mudou
drasticamente. Marlon não foi pra casa, depois de altas horas cheirando todas
no estúdio. Pelo contrário, ele tinha que aparecer em um lugar depois de sair
dali. Talvez aquela fosse a última noite na vida em que ele dormiria com a
mente pesada. Talvez aquela fosse a última noite na vida em que ele dormiria.
Talvez aquela fosse a última noite na vida. A última noite de todas as outras,
porque a decisão havia sido tomada.
Tantas e tantas da madrugada de um
domingo pra segunda, Marlon, o cafuçu rebelde, estava descontrolado e indo em
direção à casa de seu vizinho, Fonseca. Seu objetivo: Davi.
__________
#SUBÚRBIAinc - FÁBRICA DE SUBURBANOS
Detalhe
por detalhe das maiores fábricas de machos suburbanos e suas verdadeiras obras,
que ajudaram a inspirar essa saga. "SÚBURBIA inc." é a fábrica de
suburbanos. É a história por trás da história:
+ detalhes técnicos, curiosidades e inspirações
escondidas nos enredos e capítulos de Subúrbia;
+ meu bloco pessoal e exclusivo de notas, comentários e
várias aleatoriedades registradas ao longo do processo de criação;
+ a ficha ilustrada de todos os personagens, incluindo
informações inusitadas, como por exemplo, relacionamentos anteriores, em quem
votou nas últimas eleições presidenciais, prato favorito, hobby, profissão,
capítulos em que aparece, etc;
+ todas as últimas edições comentadas do jornal
FOFOQUINHA news, seu veículo de notícia que você não precisa, na hora em que
você menos necessita!;
+ PASSADO, PRESENTE e FUTURO, os três bônus finais, pra
encerrar a era suburbana.
A
fábrica de suburbanos abre as portas depois de FOFOQUINHA, o último capítulo de
Subúrbia.
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+ twitter: @andmarvin_
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+ e-mail: andmarvin@yahoo.com
Gostei muito desse capítulo, fez relembrar de capítulos anteriores...
ResponderExcluirNão é exatamente um capítulo, é mais uma preparação pro final e também o anúncio da #SUBÚRBIAinc, que é parte do bônus. :)
ExcluirFicou cansativo, cheio de pontas e desinteressante. Fico triste que suburbia tenha começado tão espetacular e terminado assim.
ResponderExcluirDesculpe, mas por favor me entenda, o tesão por suburbia e seus macho acabou.
Entendo, não precisa se explicar tanto. Obrigado por ter acompanhado até aqui! :)
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